domingo, maio 08, 2005

TRÊS PALESTRAS SOBRE A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL

O NOVO CÓDIGO CIVIL A LUZ DA HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL, 2003
STRECK, Lenio Luiz. Direito civil, direitos sociais e a Constituição: novos paradigmas a luz da hermenêutica juridica.
BARROSO, Luis Roberto. Aspectos constitucionais do novo Código Civil.
FACHIN, Luiz Edson. Contrato, titulariedade e família: da codificação à constitucionalização

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Direito civil, direitos sociais e a Constituição: novos paradigmas à luz da hermenêutica jurídica contemporânea

(em digitação...)

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Aspectos constitucionais do novo Código Civil

Eu tenho muito prazer de estar aqui e partilhar algumas idéias e algumas reflexões sobre o tema que eu rebatizei de Hermenêutica Jurídica, Constituição e o Novo Código Civil.
Conta uma lenda amplamente disseminada, eu suponho, pelos civilistas, que um cliente teria entrado certa vez em uma livraria muito tradicional e pediu um exemplar da Constituição. E o vendedor olhou para ele com o olhar grave e disse: senhor, infelizmente não vendemos periódicos.
E provavelmente é por essa experiência que nós outros temos de trabalhar com legislação nova, com novas normas, com o advento de uma nova normatização em alguma matéria que justifica o convite honroso que foi feito a mim para estar aqui e participar desse debate.
Nessa matéria, é verdade, os constitucionalistas têm experiência - já tivemos oito constituições - e a última, a de 1988, já sofreu 39 emendas. Até hoje pela manhã, porque há uma quadragésima emenda em votação. Portanto, no direito constitucional brasileiro é até possível morrer de susto, mas de tédio - jamais. E é para essa reflexão constitucional, para esse olhar constitucional sobre o direito civil que eu vim aqui essa tarde.
O Código Civil entrou em vigor em janeiro desse ano. Devo dizer que eu já havia estudado esse Código Civil em 1984, ou 1985, quando fiz o meu concurso para Procurador do Estado. Porque todo concursando é um ser paranóico. E eu imaginei: vai que o examinador faça uma pergunta sobre o Novo Código Civil. Porque o concursando é um sujeito que acorda no meio da noite e pergunta: ai, meu Deus do Céu, e se o nu-proprietário não participar da eleição do cabecel? Que é uma coisa que jamais acontecerá, salvo neste universo pervertido de quem vai fazer o concurso, e imagina que todos os demais são pervertidos também. E às vezes até são. Pois bem, deixei o Código Civil de lado nesses todos anos porque a melhor doutrina civilista, os autores de direito civil mais progressitas tinham uma visão severamente crítica do NCC e fizeram literalmente uma campanha para que ele não fosse aprovado. Os dois civilistas, ou dois dos civilistas do meu coração participaram dessa campanha. O professor Gustavo Tepedino escrevendo sobre o Novo Código Civil, referiu-se a ele como retrógrado e demagógico. E fez uma apelo ao presidente da república para vetá-lo. E o professor Luiz Édson Facchin, que aqui está presente, elaborou um parecer, concluindo pela inconstitucionalidade do Código Civil por dois fundamentos que se pode destacar. O primeiro de que o Código Civil novo não traduzia a supremacia que o princípio da dignidade da pessoa humana devia desfrutar sobre as relações patrimoniais. E que ademais, em algumas áreas, o Código violava o princípio da vedação do retrocesso. E, portanto, não me pareceu conveniente estudar esse Novo Código Civil a menos que ele de fato se tornasse lei. E ele se tornou lei. E, portanto, todos nós vivemos uma corrida para entender o Novo Código Civil.
Eu uma vez disse, num discurso de formatura que a vida é feita de vitórias e de derrotas. E que há muitas lutas depois da vitória. E, graças a Deus, existe vida depois da derrota. E, portanto, já que o Código Civil foi aprovado e tornou-se lei, o melhor que pode fazer o conjunto de pessoas que pensa o direito de uma forma construtiva é procurar interpretar - construtivamente - esse Código Civil e transformá-lo num instrumento de bom direito. Portanto, e a esse tipo de interpretação do Código Civil e a esta associação que se deve fazer entre o Código Civil e a Constituição que eu vou dedicar esta exposição.
De modo que o capítulo que damos início agora, que é o terceiro desta exposição intitula-se Constituição e Código Civil: discutir a relação (está na moda!)
O Direito Civil é herdeiro da tradição milenar representada pelo direito romano. Mas o direito constitucional é um direito de formação recente. O constitucionalismo moderno remota das revoluções liberais. Na verdade, somente após as revoluções liberias é que surgiu o objeto do direito constitucional, que foi a própria Constituição escrita - a primeira, a americana, de 1787, e a segunda, a francesa, de 1789. As revoluções liberais têm, como todos sabemos, como marco simbólico a Revolução Francesa de 1789. Interessantemente, a Revolução Francesa, que representa um marco no direito constituicional, porque a partir dela se desenvolve a idéia das Constituições escritas, é também um marco do direito civil porque foi, logo após a Revolução Francesa, no início do período Napoleônico, que surge o grande monumento que, durante muito tempo, presidiu o direito civil, que foi o Código napoleônico de 1804.
Nada obstante essa contemporaneidade entre o surgimento das constituições escritas e o surgimento do Código Civil napoleônico, a verdade é que o direito civil e o direito constitucional integravam e integraram por muito tempo mundos à parte. A Constituição era tida mais como documento político que, no máximo, regia as relações entre os cidadãos e o estado; e o Código Civil, este sim, no centro do sistema jurídico, era tido como a Constituição do direito privado. Nesta fase, não se reconhecia, como pesteriormente veio a se reconhecer, a normatividade da Constituição e, portanto, a sua incidência sobre os diferentes ramos do direito e sobre as diferentes relações jurídicas em geral.
Portanto, no seu primeiro momento, as relações entre a Constituição e o Código Civil estruturavam-se sob um modelo de incomunicabilidade: havia o mundo da Constituição e havia o mundo do direito civil.
No entanto, nas últimas décadas verificou-se - e esste é o quarto capítulo da minha exposição - a ascensão científica - e política - da Constituição, com a conseqüênte perda da centralidade do Código Civil.
Logo após a Segunda Guerra Mundial, teve início, sobretudo na Alemanha, o processo pelo qual a Constituição foi progressivamente sendo transferida para o centro do sistema jurídico. Em primeiro lugar, pelo reconhecimento de força normativa às suas disposições. A tradição européia, da qual o Brasil foi herdeiro, diferentemente da tradição americana, não tratava a Constituição como um conjunto de normas jurídicas. A Constituição era tratada como um conjunto de programas de ação, como uma convocação aos poderes políticos para que atuassem. Não se reconhecia à Constituição aplicabilidade direta e imediata.
A partir da Segunda Guerra Mundial, esse fenômeno muda de feição e passa-se a reconhecer normatividade, força normativa à Constituição, simultaneamente a fase na qual se cria, na própria Alemanha e em outros países da Europa, diversos tribunais constitucionais, tribunais encarregados de exercer o controle por ação direta e incidental da legislação, de uma maneira geral. Portanto, a Constituição tem neste período pós-guerra, o marco inicial da sua transição para o centro do sistema. O no Brasil, o Código Civil, cuja vigência é de 1917, foi, progressivamente, ele próprio, alijado da centralidade dentro do próprio direito civil, porque começaram a ser desenvolvidos inúmeros microssistemas, como por exemplo, no direito de família, o Estatuto da Mulher Casada, a Lei do Divórcio, a Lei de Alimentos, a Lei da União Estável - todas essas normas fora do Código Civil. Depois, desenvolveu-se o Código do Consumidor, o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei de Locações - vale dizer, importantes domínios, cobertos pelo direito civil, já não estavam mais abrigados dentro do Código. E como conseqüência, o Código Civil perdeu parte dessa sua centralidade no sistema.
E a partir de 1988, com a redemocratização do Brasil, aqui se passou o mesmo processo que na Europa ocorrera logo depois da Segunda Guerra Mundial, que foi a ascenção científica e normativa da Constituição e a sua passagem para o centro do sistema, onde passou a desfrutar não apenas de uma supremacia formal, que a Constituição sempre teve, mas uma supremacia axiológica, de uma supremacia fundada na observância obrigatória, por todos, dos valores arbrigados no texto constitucional. Ocorreu no Brasil, portanto, com a Constituição de 1988, o fenômeno que alguns autores batizam de filtragem constitucional. Um fenômeno pelo qual a Constituição deve ser vista não apenas como um sistema em si, mas também como a lente através da qual se devem ler todos os demais ramos do Direito. Quando se ouve falar em constitucionalização do direito civil ou em constitucionalização do direito processual, por exemplo, esse fenômeno não identifica propriamente o fato de que há na Constituição normas de direito civil ou normas de direito processual. Ele identifica, na verdade, a circunstância de que as normas do direito civil e as normas do direito penal passaram a ser relidas e reintrepretadas à luz dos princípios e dos valores previstos na Constituição. E, portanto, no direito civil, por exemplo, passou a ter centralidade na interpretação de todas as suas normas, o princípio da dignidade da pessoa humana, que operou uma repersonalização - para usar o termo do Facchin - do direito civil correspondente a uma despatrimonialização do direito civil. O direito civil deixou de ser, por excelência, o domínio tutelar do patrimônio e passou a ser um espaço importante de afirmação do princípio da dignidade da pessoa humana.
E com isso nós chegamos ao quinto capítulo da minha exposição, que é a hermenêutica jurídica e nova interpretação constitucional.
Tenho uma notícia importante: toda interpretação jurídica é interpretação constitucional. Eu gosto brincar, e algumas pessoas já ouviram-me dizer isso, que meu pai, quando eu comecei a minha vida, me dizia: meu filho, precisa parar com esse negócio de fumar, ser Flamengo e o direito constitucional também não vai levá-lo a parte alguma. Estuda processo, ele me dizia. E a verdade é que nós demos a volta por cima e hoje em dia já não há mais nada de verdadeiramente importante que se possa pensar ou fazer em termos de direito no Brasil que não passe pela capacidade de trabalhar com as categorias e os princípios constitucionais. Toda interpretação jurídica é interpretação constitucional. E é muito fácil demonstrar a tese. Interpreta-se a Constituição, em todas as situações, ou diretamente ou indiretamente. Interpreta-se a Constituição diretamente quando uma determinada pretensão se funda nela. Alguém postula uma imunidade tributária; alguém postula uma aposentadoria por tempo de serviço; alguém postula uma determinada situação de isonomia. Todas essas são pretensões fundadas diretamente na Constituição e para solucioná-las, o intérprete-juiz terá de interpretar a Constituição.
Mas interpreta-se, também, a Constituição indiretamente em todos os demais casos, por sempre que uma pretensão se funda em uma norma infraconstitucional o juiz, o intérprete terá de proceder a duas interpretações, a duas operações constitucionais. A primeira: ele só poderá aplicar a norma infraconstitucional se ela for compatível com a constituição e, portanto, há uma operação de controle de constitucionalidade sempre embutida na aplicação de uma norma infraconstitucional. E em segundo lugar, ele deverá interpretar a norma infraconstitucional visando a preservar os valores e a realizar os fins constitucionais. Umas das modalidades de eficácia de uma norma constitucional é condicionar a interpretação do direito infraconstitucional. Portanto, toda interpretação jurídica é, em última análise, uma interpretação direta ou indireta da Constituição.
Acertada esta premissa, que me parece muito importante, convém identificar o estado da arte, hoje, em matéria de interpretação constitucional. Interpretação esta que envolve a utilização de alguns conceitos clássicos e tradicionais, mas que envolve também, o domínio de um conjunto importante de idéias que já dominou a doutrina e começa a dominar também a prática jurisprudencial.
A interpretação constitucional tradicional, a interpretação jurídica tradicional funda-se em um modelo de regras, que são aplicáveis mediante subsunção por um juiz, cujo papel é revelar o sentido da norma e fazê-la incidir no caso concreto. Analiticamente esta definição pode ser exposta da seguinte forma: o modelo jurídico tradicional é fundado em regras porque regras normalmente descrevem condutas. E o modelo é de subsunção porque o raciocínio da interpretação jurídica normalmente é um raciocínio silogístico, em que a lei é a premissa maior, o fato é a premissa menor e a sentença é a conclusão. O papel do juiz neste processo tradicional não é de criação do direito, é uma atuação de conhecimento: ele vai à norma, identifica no seu relato abstrato a vontade da norma e enquadra os fatos na norma, produzindo um resultado jurídico. Esta é operação que todos nós fazemos na nossa rotina de vida. E ela é suficiente e adequada para resolver uma boa quantidade de problemas. Mas não todos; e especialmente não os problemas constitucionais. É que, hoje em dia, a moderna dogmática jurídica já não trabalha mais sob a premissa de que toda norma jurídica tenha uma única interpretação, que estabeleça um único resultado para uma determinada situação. A moderna interpretação jurídica, hoje, entende que em muitas hipóteses, o relato da norma é uma moldura dentro da qual se desenham diferentes possibilidades interpretativas. E é fácil exemplificar: é que as normas, em geral, as normas constitucionais em particular e, já agora, o Código Civil, servem-se muitas vezes de cláusulas gerais, de conceitos indeterminados - ordem pública, segurança jurídica; ou utilizam princípios que são normas distintas das regras, porque os princípios em lugar de descreverem condutas, eles elegem valores ou indicam fins sem descreverem a conduta. O que mudou nessa nova interpretação constitucional? Mudou o papel do intérprete, porque esses conceitos indeterminados, essas cláusulas gerais precisam ser intergradas à vista do caso concreto pela vontade subjetiva do juiz. Quando o Estatuto da Criança e do Adolescente determina ao juiz que decida conforme seja o melhor interesse da criança o que se está fazendo é transferindo para o juiz parte da competência consistente em fazer escolhas, escolhas que só podem ser feitas à vista do caso concreto. Quando a norma diz - o melhor interesse da criança; ou quando a norma diz - a decisão que melhor satisfaça a justiça; ou quando a norma diz - a solução que corresponda à redução das desigualdades sociais, está na verdade transferindo para o juiz o poder de elaborar escolhas.
E, por fim, o último conceito que gostaria de introduzir é que os princípios constitucionais, numa ordem democrática, muitas vezes tutelam valores contrapostos. A Constituição brasileira protege a livre iniciativa, mas prevê a intervenção do Estado; consagra o direito de propriedade, mas prevê a função social da propriedade; consagra a liberdade de expressão e informação, mas também o direito de privacidade. Uma ordem jurídica democrática, portanto, terá princípios que tutelam valores contrapostos e que entrarão em linha de tensão. Quando duas normas constitucionais, dois princípios, dois direitos fundamentais entram em linha de colisão não há uma solução in abstrato no ordenamento para esta colisão. Só à vista dos elementos do caso concreto será possível o juiz escolher - aqui deverá prevalecer a liberdade de expressão; ou, aqui deverá prevalecer o direito de privacidade. É preciso, portanto, fazer ponderações de valores para saber o que deve prevalecer à vista do caso concreto.
Fazendo, portanto, um resumo sumário do que acabo de dizer:
a) a nova interpretação constitucional trabalha com cláusulas gerais, trabalha com princípios e, portanto, a sua aplicação aumenta o papel do intérprete, dá a ele algum grau de discricionariedade que consiste em revelar o sentido da cláusula geral no caso concreto, ou fazer ponderações de princípios no caso concreto; e transfere para o juiz o dever de fundamentação adequada, de argumentativamente demonstrar que produziu a melhor solução.
Esta, portanto, é a idéia de nova interpretação constitucional contraposta à da interpretação tradicional. A interpretação tradicional é um modelo de regras em que a operação intelectual do intérprete é de subsunção: enquadrar o fato na regra. Mas a interpretação constitucional moderna dá muitas vezes a primazia do fato sobre a norma, porque a solução não estará na norma in abstrato, e aumenta a discricionariedade judicial e, conseqüentemente, o seu dever de, argumentativamente, mostrar que a solução que ele escolheu é a que melhor realiza a vontade do caso concreto.
Esta não é uma exposição específica sobre interpretação constitucional e eu não quero aprofundar essas idéias e nem fugir do tópico central que nos une aqui.
Capítulo VI: O Novo Código Civil e a Introdução de cláusulas gerais e normas de princípio.
De acordo com a melhor doutrina o Novo Código Civil introduziu duas posições, ou apresenta duas características marcantes, do ponto de vista metodológico. A primeira foi a unificação dos direitos das obrigações. A segunda foi a importação do direito civil dessa técnica que passou a dominar o direito constitucional que é a do emprego das cláusulas gerais. O Código Civil apresenta inúmeras cláusulas gerais e algumas delas passaram a figurar como cânones interpretativos do direito civil. São elas: a proteção dos direitos da personalidade, introduzidos no Novo Código Civil; conceitos como o da função social da propriedade; a função social do contrato; e um conceito valiosíssimo, que vale tanto para o direito privado quanto para o direito público que é o da boa-fé objetiva. Como conseqüência, o direito civil passou a precisar ser interpretado utilizando algumas dessas cataegorias, que eu me referi, integram a nova interpretação constitucional, a saber: a qualificação in concreto do sentido das cláusulas gerais, porque boa-fé objetiva não é um conceito que no relato abstrato da norma resolva todas as situações. É preciso ver, especificamente, o caso concreto. E, além disso, o direito civil passou a ser interpretado a luz de princípios como o da dignidade da pessoa humana e o princípio da solidariedade.
Portanto, o direito civil, hoje, apresenta algumas características comuns com o direito constitucional. Além dele dever ser interpretado à luz dos princípios constitucionais, ele passou a ter princípios próprios e passou a ter conceitos indeterminados que funcionam como cânones interpretativos do próprio direito civil. E aqui é preciso fazer um esclarecimento antes de passarmos para o capítulo final - e mais emocionante - da minha exposição.
Os princípios como o da dignidade da pessoa humana, princípio como o da solidariedade social, princípio como o da justiça; princípios como o da razoabilidade passaram a permitir que o juiz, recebendo da norma um mandato para fazer a justiça do caso concreto, pudesse, muitas vezes, adaptar a rigidez normativa do modelo de regras para fazer a justiça do caso concreto. Um princípio como o da solidariedade, um princípio como o da dignidade da pessoa humana ou da razoabilidade dão ao intérprete uma flexibilidade para fazer a justiça do caso concreto. Não é um cheque em branco porque há parâmetros estabelecidos para cada um deles, às vezes mais rígidos, às vezes menos rígidos. Mas a ordem jurídica ideal deve ser composta de um conjunto amplo de regras, porque as regras representam a segurança jurídica e a previsibilidade; e um conjunto de príncípios, porque os princípios dão a flexibilidade que permitam a justiça do caso concreto. Se tudo for princípio a insegurança é geral; se tudo for regra a flexibilidade para fazer a justiça do caso concreto inexiste. Portanto se diz que a ordem jurídico-ideal hoje é um sistema aberto de regras e princípios na dosagem certa para que se preserve o equilíbrio entre a segurança jurídica e a justiça.
Eu disse, no início da minha exposição, que a Constituição e o direito civil viveram durante muito tempo em regime de separação absoluta de bens. O direito civil e o direito constitucional não se comunicavam - ou não se comunicaram por muitas décadas (mais de um século). Mas esta é uma situação que mudou. A grande novidade na interpretação jurídica hoje do direito civil é precisamente a sua relação com a Constituição, é o fato de que o direito civil, como os demais ramos do direito, mas aqui nos interessa o direito civil, passou a ter a sua interpretação condicionada pela Constituição e pelos princípios constitucionais.
E aí surge o tema, que o capítulo final desta minha exposição, que diz respeito às relações entre direitos fundamentais e relações privadas. Quando ouvirem uma referência, ligeiramente pernóstica, como é comum no nosso meio, a coisas como - a eficácia horizontal dos direitos fundamentais - a eficácia horizontal dos direitos fundamentais quer dizer a aplicabilidade ou não dos direitos fundamentais previstos na Constituição às relações privadas.
Suponham que um clube de futebol proíba os jornalistas de dois veículos de comunicação de ingressarem nas suas dependências em dias de treino, porque os jornalistas desses dois meios de comunicação vinham fazendo muitas críticas à equipe, e, conseqüentemente, o vice-presidente desse clube proibiu o ingresso de jornalistas desses dois veículos. Interessantemente, os jornalistas dos demais veículos de comunicação, todos , podiam ter acesso às dependências. Temos uma situação da maior complexidade aqui que envolve determinar se e até quanto os direitos fundamentais devem interferir com as relações privadas. O que o clube de futebol pode invocar em favor da sua posição? Pode invocar: o clube é uma entidade privada, uma sociedade civil, portanto uma instituição de direito privado. As dependências do clube são propriedade privada. Aqui vigora a autonomia da vontade, porque esse é o grande princípio que rege as relações privadas. E todos estaríamos de acordo.
Os jornalistas dirão: a Constituição assegura a liberdade de expressão e de informação. Ademais, também nesse caso, está sendo violado o princípio da isonomia, porque o meu concorrente pode entrar, mas eu não posso cobrir os treinos desse time de futebol. E, como conseqüência, o judiciário deve assegurar o meu direito de ingressar no estádio. Esta é tipicamente uma situação de conflito, uma situação que exige ponderação de normas e de valores, cuja premissa teórica para a solução é saber se os direitos fundamentais, se os direitos constitucionais incidem ou não na esfera privada, porque se incidirem o jornalista tem de entrar; se não incidirem prevalece o direito de propriedade e a autonomia da vontade.
Há outros exemplos, todos difícies, quase todos difícies. Suponham que uma escola judaica proíbam a matrícula de qualquer criança que não seja de origem judaica. Se for tratado como um domínio privado essa decisão ela é legítima. Se, se impuser a aplicação do princípio da isonomia nessa esfera, ela é ilegítima.
Suponha que uma empresa estabeleça, preveja no seu contrato de trabalho que as suas empregadas mulheres não possam se casar porque se casarem esta será justa causa para a demissão. Ou pior: não podem engravidar, pois se engravidarem será justa causa para a demissão. Ou suponham - esse é um caso concreto ocorrido na França - que um testador deixe um bem para uma determinada pessoa com a condição de que não se case com ninguém de origem muçulmana. Claro, basta não receber a herança, mas isso não resolve o problema jurídico de saber se a cláusula é legítima ou não é legítima.
Estes exemplos que eu dei, alguns têm solução singela e alguns têm solução extremamente difícil. Um caso difícil, no sentido técnico, é aquele caso que envolve princípios contrapostos, é aquele caso em que duas pessoas de boa-fé podem produzir soluções totalmente diversas. E se uma norma permite que se produzam soluções totalmente diversas, e não há como evitar, a legitimação da atividade judicial se transfere para a teoria da argumentação. Vale dizer, a capacidade de um juiz demonstrar que aquela solução que ele escolheu é a que realiza adequadamente a vontade constitucional. E, em um caso, poderá ser aplicar um direito fundamental na esfera privada, e em outros casos poderá não ser. Suponham que o entendimento dominante seja de que o princípio da isonomia se aplica na esfera privada, mas não pode ser apicável na extensão máxima. Por exemplo, um pai terá de dar sempre presentes equivalentes para os seus filhos; se levar um filho ao cinema tem de necessariamente levar o outro, mas o filme é proibido para o outro, então ele tem de ir duas vezes ao cinema. Portanto, há espaços em que a transposição automática dos direitos fundamentais para as relações privadas simplesmente não poderá funcionar. E há espaços em que ele deverá funcionar.
A dificuldade nessa matéria tem sido formular uma regra geral que sirva a diferentes situações e liberte o intérprete das situações de casuísmos. Existem três posições doutrinárias nessa esfera, eu diria, de relações entre o direito civil, o direito privado e as relações privadas e o direito constitucional e os direitos fundamentais que a Constituição consagra.
A primeira posição é a de que os direitos fundamentais só valem para as relações que envolvam o Estado e, portanto, não valem nas relações estritamente privadas. Esta é a linha de entendimento que prevalece majoritariamente nos Estados Unidos, na Suíça e no Canadá: direitos fundamentais só quando estão contrapostos às relações entre o Estado, a administração, e o particular. Exige-se, essa a expressão americana, uma state action, é preciso que tenha um ato estatal para que se possam invocar direitos fundamentais. A doutrina evoluiu e alcança também os atos que o particular pratique por delegação estatal. Mas em linhas gerais, nesses países o conflito se resolve da seguinte forma, um exemplo suíço: uma casa de exibição de filmes sofria críticas severas e constantes de um jornalista especializado em programação de cinema. O jornalista um dia comparece à sala de sessão e o proprietário impede o seu acesso dizendo, “democraticamente”: pra falar mal de mim não entra. Este jornalista vai a juízo e postula, em nome da sua liberdade de expressão, o direito de ingressar na casa de espetáculos. Neste caso concreto o tribunal suíço entendeu que prevalecia o direito de propriedade e a autonomia da vontade e, portanto, se a casa de espetáculos pertence àquela pessoa (na verdade, era um casal) eles poderiam simplesmente proibir o ingresso de quem quer que desejasse lá entrar contra a vontade deles.
A segunda teoria é a da eficácia direta ou imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas. Significa dizer: a constituição está no topo do sistema jurídico, ela incide sobre todos os demais ramos do direito, não há relação jurídica que possa legitimamente pretender estar fora da incidência e do regime jurídico da constituição. E, como conseqüência, a Constituição aplica-se a todas as relações.
E a terceira tese é a da denominada eficáfia mediata ou indireta dos direitos fundamentais nas relações privadas. Por esta formulação, que é a formulação que vigora na Alemanha, os direitos fundamentais se aplicam nas relações privadas, mas não diretamente. Eles se aplicam pela atuação do legislador infraconstitucional e se aplica pela atuação do judiciário na medida em que o judiciário deve interpretar as normas do direito civil notadamente as cláusulas gerais do direito civil - boa-fé, função social - de modo compatível com o que dispõe a Constituição. O exemplo jurisprudencial que ilustra esta tese é um caso ocorrido na Alemanha e julgado pelo tribunal constitucional, conhecido como o “o caso Lud”. Neste caso esse cidadão de nome Lud, que era presidente de um clube de imprensa, de um órgão associativo de imprensa, deflagrou uma campanha contra a exibição de um determinado filme, cujo diretor havia feito uma peça anti-semita de apoio a Hitler, durante o domínio nazista na Alemanha. E, portanto, esse jornalista passou a defender o boicote à exibição desse filme, pedindo à população que não prestigiasse o filme. A empresa distribuidora entrou com uma ação judicial, na qual pediu que se determinasse que o Lud se abstivesse de difundir o boicote porque o Código Civil alemão proíbe que alguém, deliberadamente, tente causar dano a outrem. E, indiscutivelmente, o Lud estava pretendendo causar um dano ao produtor daquele filme, impedindo que o público acorresse à exibição. Na estância ordinária venceu a produtora e foi dada a ordem para que o Lud se abstivesse de liderar a campanha pelo boicote. Porém, o Tribunal Constitucional Federal alemão reverteu a decisão sob o fundamento de aquela norma do Código Civil deveria ser interpretada à luz da Constituição, e a Constituição assegurava a liberdade de expressão e de opinião, que era o caso envolvido. E, portanto, ninguém pode, diz o Código Civil, causar deliberadamente dano a outrem, salvo no exercício legítimo da sua liberdade de opinião. E, portanto, esse foi o grande precendente que transplantou para o direito privado e para as relações privadas a idéia de que elas também deveriam ser regidas pelo direitos fundamentais. A verdade é que, nada obstante como opção ideológica e filosófica que se possa e - a meu ver - que se deva fazer pela aplicabilidade direta e imediata dos direitos fundamentais, todas as relações, eu diria, prima facie, é como eu pensaria essa questão, é preciso identificar que há situações que merecem destaque e o conceito chave nessa matéria continua a ser, volta a ser o da ponderação. Vejam, há situações em que a norma constitucional claramente não incide sobre a esfera privada. O princípio da legalidade administrativa, que é uma garantia fundamental não se aplica às relações privadas; o princípio da anterioridade da lei tributária, evidentemente, não se aplica às relações privadas. Portanto, há consenso que um conjunto importante de direitos fundamentais, por definição, somente se aplicarão às relações Estado/particular, em nenhuma hipótese se aplicarão às relações entre particulares.
Há casos em que, inequivocamente, os direitos fundamentais devem se aplicar diretamente às relações privadas. O direito de propriedade, por evidente, que é oponível entre particulares; mas, outros direitos, como o direito à honra, o direito à integridade física eles estão lá para proteger as pessoas não apenas em face do Estado, mas também em face dos particulares. Ninguém pode celebrar um contrato de trabalho prevendo que no caso de atraso, no caso de multa sujeitar-se-á a sanções de espancamento, ou a sanções de insultos morais, por que? Porque esses são valores que devem presidir todas as relações, inclusive as relações de natureza privada.
Em terceiro lugar, há relações privadas em que o legislador já atuou, há situações em que o legislador já disse não é possível nas relações privadas discriminar em função da raça e, portanto, já houve a intercondição legislativa. Ou o legislador estabelece: é crime a interceptação telefônica feita entre particulares sem autorização judicial. Portanto, há dificuldades em formular uma regra geral porque há situações singulares. Porém, penso que uma boa forma de colocar essa matéria (e aqui eu termino) é de que, como regra geral, as relações privadas devem mesmo se reger pelo princípio da autonomia da vontade. E como regra geral, os direitos fundamentais devem ser aplicar, sim, em todas as situações da vida. Bom, eu acabo de criar duas regras que estão em conflito. Pois bem, toda a moderna dogmática constitucional procura demonstar que quando duas regras entram em conflito o que se deve fazer é uma ponderação de valores. E, portanto, diante do caso concreto, será a hipótese de se ponderar qual o valor deverá prevalecer: a autonomia da vontade, que é uma garantia constitucional, ou o direito fundamental envolvido, que pode ser o princípio da isonomia, pode ser a liberdade de expressão, pode ser diversos princípios. Evidentemente, é possível até mesmo estabelecer, doutrinariamente, algumas regras de desempate. Eu certamente imaginaria que nas relações não horizontais, nas relações onde haja desigualdade flagrante entre as partes o intérprete deverá tender para a preservação dos direitos fundamentais em lugar da autonomia da vontade. Ou seja, onde há desigualdade entre as partes a autonomia pode ser perversa e os direitos fundamentais podem ser a única forma de se equilibrar. Nas hipóteses - e o Código Civil já prevê isso - em que haja uma manifesta injustiça numa determinada relação e seja possível detectá-la o desempate na ponderação deverá ser em favor dos direitos fundamentais. E, evidentemente, quando o conflito for entre o princípio da dignidade da pessoa humana e a autonomia da vontade o desempate deverá ser em favor do direito fundamental. Essas regras não são positivadas e, a rigor, a meu ver, não são positiváveis, porque somente à vista do caso concreto será possível produzir a solução constitucionalmente adequada. Eu já contei aqui mesmo um exemplo concreto, um pouco caricato de ponderação, mas como possivelmente era um outro público, quem já ouviu me desculpe, mas acho que é extremamente ilustrativo de como no moderno direito constitucional há situações em que a solução não pode ser encontrada na norma, a solução só pode ser encontrada à luz dos elementos do caso concreto e será produto de um razoável exercício de discricionariedade por parte do intérprete. Eu até acabei de escrever um trabalho sobre esse assunto, e usei esse exemplo, que é o exemplo algo caricato do ministro de Estado que é visto saindo de um motel de Brasília acompanhado de uma senhora. Eu digo de uma senhora para não trazer complicações desnecessárias ao nosso exemplo. Saindo desse motel de Brasília, acompanhado de uma senhora, essa alta autoridade da república é fotografada por um jornalista que vinha passando no local. E o jornalista está escrevendo, para mal dos pecados do nosso ministro, uma matéria chamada a infidelidade e o poder. E o ministro fica sabendo que estará na capa da próxima edição dessa revista semanal que sai no sábado. Ele ali, embaixo da placa - Motel ... - cabelos molhados: impossível negar. Na quarta-feira o ministro toma conhecimento que vai sai a matéria e ele corre ao poder judiciário com uma medida judicial cautelar e pede ao juiz que impeça a publicação da matéria e invoca os seguintes fundamentos: eram onze horas da noite, portanto, fora do horário do expediente; ele está no seu carro particular - não era o carro do ministério; e “ninguém tem nada com a minha vida particular, ninguém tem direito, ninguém tem interesse legítimo em saber o que eu faço fora do meu expediente de trabalho. Portanto, a publicação da matéria é altamente violadora do meu direito de privacidade”. O órgão de imprensa, tomando conhecimento da cautelar, imediatamente entra com uma petição: não, absolutamente, essa é uma questão que envolve liberdade de expressão e direito de informação - liberdade de informação. Em nenhuma hipótese o juiz pode impedir a publicação dessa matéria. Esse é um caso que, se não é real é plausível, e, em outro cenário, em outras circunstâncias, é um caso em que um juiz estará sujeito a ter de decidir.
Eu acho que se nós ouvíssemos a opinião das pessoas aqui presentes provavelmente haveria uma grande discensão. Muitas pessoas achariam que a matéria não poderia ser publicada, e muitas achariam que poderia ser publicada. Esse é um dos grandes problemas dessa interpretação constitucional que flexibilizou, que passou a ser feita com base em ponderação. É que aqui, mais do que nunca, cada cabeça uma sentença. Pois bem, eu como jornalista jamais faria essa matéria. Acho o fim da picada alguém praticar uma conduta jornalística dessa natureza. Mas como juiz eu não daria a liminar em princípio. E não daria a liminar pela seguinte razão: como não há uma solução previamente estabelecida no ordenamento, a legitimidade da decisão é a capacidade que o intérprete tem de convencer o seu interlocutor e um auditório esclarecido de que produziu a melhor solução. Porque se não produziu o tribunal pode rever, portanto ele precisa convencer as partes; bom, uma das partes não se convence nunca, mas é preciso convencer a comunidade jurídica, em geral, e ao seu tribunal. Pois eu diria: não daria a liminar, por três linhas argumentativas. A primeira: o fato era verdadeiro. De fato o ministro estava saindo do motel. Segunda linha argumentativa: o conhecimento do fato foi obtido por meio lícito, porque se tivesse sido ilícito eu não exitaria em dar a liminar. Se fosse uma gravação clandestina, uma invasão de domícilio eu não teria nenhuma dúvida. Em terceiro lugar - e, talvez, a mais relevante: para mal dos pecados do nosso ministro, há sim interesse público em saber com quem ele se deita, porque, suponham, fosse o ministro dos transportes e houvesse uma grande licitação em curso no Ministério dos Transportes, e um dos licitantes estivesse se valendo de um recurso, digamos assim, não previsto no edital. A privacidade das pessoas que ocupam cargos públicos é aferida por uma medida diversa da privacidade das pessoas que não ocupam cargos públicos. Portanto, nesse conjunto de dificuldades, gostaria de passar pelo papel de que eu vim para explicar, não para confundir; mas a verdade é que essas idéias e esses conceitos eles são novos, sobretudo novos na dogmática jurídica brasileira. Nós estamos pensando como isso vai funcionar e, ao mesmo tempo, estamos vivendo esses fatos e está-se criando uma dogmática jurídica que procura ordenara as idéias e estabelecer valores para a ponderação de valores, para a teoria da argumentação e para os limites da aplicação privada dos direitos fundamentais.
São essas as idéias que eu gostaria de compatilhar com vocês e agradeço muito o convite.

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Contrato, titulariedade e família: da codificação à constitucionalização

É um imenso prazer estar aqui nesta comunhão de interesses e propósitos e sob a liderança do Desembargador Sergio Cavalieri Filho. Aqui sempre emerje - e bem. E nós, de fato, nós sentimos em casa; e, sentir-se em casa, me permitam cumprimentar a todos que estão participando desse evento, que estão à mesa; e saudar de modo especial os meus dois queridos amigos, Luís Roberto Barroso e Lenio Luiz Streck. Não poderia ser mais oportuna a presença de ambos para que nós todos auríssemos o estágio atual da arte nessa discussão sobre a constitucionalização do direito civil e, portanto, do direito privado. De um lado, a presença do sr. Lenio, que indiscutivelmente é uma das maiores autoridades em hermenêutica jurídica desse país, que traduz um dos grandes desafios que nós todos estamos nesse exato momento chamados a enfrentar, que é o de transformar o Código Civil sancionado em 10.01.2002, e que entrou em vigor agora, no dia 11.01.2003; transformar este Código em efetivamente lei, tomada a sua densidade concreta. Porque como nós sabemos, um código não nasce Código; um código se faz Código pela operação cotidiana daqueles que labutam com o direito. E é nessa perspectiva que a tarefa do hermeneuta - uma tarefa que é crítica e construtiva; falar-se, aliás, em hermenêutica é crítica e construtiva chega a ser quase um pleonasmo porque ela é, na verdade, a não reprodução do saber e quem não reproduz o saber há de tomar em primeiro lugar o desafio de conhecer o que está a fazer para transformá-lo. É por isso que em relação ao Novo Código não se pode dizer, como dizia alguém de alguns livros, quando perguntado o que achava e que respondia: não li e não gostei. Em relação aos dois mil e tantos artigos do Código Civil nós precisamos necessariamente conhecê-los e aliás, um bom começo, é começar pelo fim. São os últimos artigos, a partir do art. 2028, que tratam precisamente desse momento que estamos a vivenciar, que é o Código antigo que declina e o novo que vai se estabelecer. Essa passagem ou essa crivagem de direito intertemporal está a demandar, seguramente, um trabalho de compreensão e há artigos e dispositivos, nisso que com alguma analogia da Constituição estamos chamando de atos civis das disposições finais transitórias; nesse conjunto de dispositivos, a exemplo do art. 2035, para o qual a leitura desde logo chamo a atenção, que contempla as regras fundamentais para compreender esse momento que vivenciamos. Por essa razão, estar aqui ao lado do sr. Lenio, é de fato um alegria, uma honra e não poderia ser mais oportuna a possibilidade de falarmos hoje numa hermenêutica, exatamente porque nós estivemos entre aqueles que não apenas criticaram o projeto, como sustentaram até mesmo, num dado momento, a sua inconstitucionalidade. Mas, agora, legem habemus, e como dizia o Ministro Carlos Maximiliano, a primeira tarefa do intérprete é tentar reconstruir o dispositivo legal, tentar dar-lhe um significado que aquele significante possa ter porque o contexto histórico /social/econômico é de fato outro. E é por isso que a hermenêutica aparece como, de fato, um grande horizonte nessa perspectiva.
A presença e a alegria de estar ao lado, do também amigo Luís Roberto Barroso, não é menor porque no direito constitucional foi no Brasil um dos primeiros que, ao olhar esse universo pela mirada do direito constitucional, mostrou que entre o direito constituicional contemporâneo no Brasil e o direito civil contemporâneo, esse que não se conforma com a manualística pedestre dos quadrinhos de resumo ao final dos capítulos, esses dois direitos contemporâneos tinham muita coisa em comum. E o que tinham em comum era precisamente a angústia de compreender que tanto no direito privado quanto no direito público, mas de um modo especial, no âmbito do direito civil, o conjunto de soluções formais apriorísticas, que caracterizava uma unidade normativa codificada, tinha perdido o seu cetro, a coroa e muito das suas jóias. Na verdade, essa perspectiva, que era a perspectiva que fundou o movimento das codificações, levasse em conta algo que, ilusoriamente, se nos dava uma segurança jurídica mais aparente do que real - qual seja, a de dar respostas prévias a questões posteriores. O conjunto de juízos apriorísticos levou alguns codificadores - lembremo-nos do caso do código civil argentino, cujo projeto original tinha mais de quatro mil artigos; e do esboço de Teixeira de Freitas; a idéia, de fato, era apresentar um conjunto de respostas prévias aos problemas que, sequer, haviam se colocado.
Ora, é precisamente essa perspectiva que estabelece um diálogo e uma comunhão entre o direito civil e o direito constitucional, fundados na contemporaneidade, fundados na idéia de que as normas constitucionais são para valer, fundados na idéia de que princípio constitucional é norma, fundados, portanto, na idéia de que o direito constitucional é, de fato, o conjunto dos princípios que governam a sociedade e que estabelece um pacto que corresponde a limite de possibilidade dessa mesma sociedade. E mais do que isso: a comunhão que estabelece nessa perspectiva, tem nas diretrizes da obra do professor Luís Roberto Barroso, a idéia da efetividade funcional, eis que não se pode a rigor falar de um direito constitucional que apenas se formule na sua abstração, despido de qualquer concretude, porque estaremos, de novo, repetindo fórmulas gerais e abstratas. Daí, porque, e, à guisa de introdução, digo da minha alegria de estar aqui, de poder ouvir a ambos e voltar a esse ambiente, cuja emoção sempre nos toma conta porque aqui verdadeiramente estamos entre amigos e entre educadores, porque me permito dizer - e disse isso aos magistrados que participaram conosco da atividade, aqui no Mestrado, na semana passada - é uma vã ilusão entender que educação jurídica se resume nas salas de aula. Aliás, em algumas salas o que se faz é deseducação jurídica. A educação jurídica é, na verdade, uma tarefa cotidiana de todos nós; do juiz que sentencia, atende a sua consciência cidadã e, ao mesmo tempo, de um modo prospectivo, sabe que ali está colocando a sua contribuição, ainda que seja uma gota d’água, eventualmente, um grão de areia, mas está dando a sua contribuição para que ao final da sua vida, no testamento da sua consciência, possa dizer com tranqüilidade aos seus filhos que cumpriu a sua missão, ou, como já disse alguém, há muito tempo atrás, combateu o bom combate. É nessa perspectiva que, portanto, estamos todos voltados a essa tarefa de educar. E é claro, que é preciso, nesses tempos que vivemos, pensar também com a cabeça nas nuvens, mas os pés no chão; como, aliás, advertia Saramago: em matéria de tempestade, quem singra o mar é bom ter a costa sempre a vista. E, nessa medida, não deixar de navegar, mas também não deixar de ter a percepção histórica de que nós estamos neste país, nesta cidade e neste momento histórico, que é um momento singular do começo de um século, que nasce sob o signo, no direito privado da constitucionalização e, ao mesmo tempo, com uma nova codificação que há de ser subssumida a uma hermenêutica axiológica e principiológica de índole constitucional.
Dito isso, gostaria de dizer-lhes que em mais 22 minutos e 35 segundos vou procurar expor três horizontes fundamentais de idéias no tema que nos concerne.
Num primeiro momento, uma reflexão, ainda que breve sobre esta idéia da constitucionalização e o seu surgimento no Brasil.
Num segundo, como se caracteriza esta circunstância e quais são, por assim dizer, o conjunto de elementos que configuram o que podemos chamar de constitucionalização.
E, em terceiro e último lugar, uma visão crítica, também, disso que chamamos de constitucionalização, porque não é possível avançar se nós mesmos não submeter-mos os nossos próprios argumentos e a nossa defesa a uma autocrítica e a uma inferência da validade dos seus pressupostos e premissas.
Nesse primeiro quadrante, uma observação que vai certamente ao encontro do que aqui já foi dito, que este fenômeno da constitucionalização é indiscutívelmente um fenômeno da contemporaneidade. Nós estamos a vivenciar nas famílias romano-germânicas ocidentais, um fenômeno que desloca, como disse o professor Barroso, a centralidade da regulação das relações jurídicas, inclusive as interprivadas, para fora daquele lugar central, reservado às codificações privadas. Isso teria, quem sabe, motivado um professor emérito da Faculdade da USP que, em 1975, descreveu ele, um grande amigo nosso e civilista, um artigo na Revista dos Tribunais, cujo título era uma pergunta: o direito civil tende a desaparecer? Essa pergunta, por uma metáfora analogia, foi respondida, sem querer que fosse, na verdade, a resposta, por um trabalho alguns anos mais tarde, traduzido e publicado no Brasil, e distribuído aos assinantes da Revista VEJA, num livro chamado “VEJA: 25 anos”; e nesse livro havia um texto da historiadora francesa, Michelle Pierrot, que se chamava “O nó e o ninho”. Curiosamente, ela se fazia uma pergunta e, por isso, digo que a resposta pode ser encontrada por metáfora, por analogia; ela se perguntava: a família tende a desaparecer? E o próprio título do trabalho dizia - “O nó e o ninho” - que na verdade, defendia ela, com todo acerto em nosso modo de ver, que desatam-se alguns nós, desaparece um determinado conceito de família, mas a idéia e a concretude da família continuam mais atual do que nunca. Aliás, se revaloriza quando se valoriza a ......, quando se valoriza a idéia de que casar é um ato de liberdade, como um ato de liberdade e de responsabilidade também é o de permanecer casado, porque alí, por sobre os vínculos formais, o que nós valorizamos é um elemento sócio-afetivo, que dá idéia de uma comunhão a quatro mãos que se constrói, que é na verdade a ratio do casamento, que é ratio das uniões não matrimonializadas, que também fundam o casamento; das famílias monoparentais, que também formam família, e assim por diante.
Ora, transposta esta idéia para aquela pergunta se o direito civil tendia a desaparecer, podemos dizer que o direito civil, fundado na idéia de que o direito se resumia à codificação, fundado na idéia de que ensinar o direito civil era apenas conhecer o Código, isso, de fato, passou a ser uma página, praticamente, virada da nossa história.
Mas, o direito civil numa outra mirada, com essa índole de natureza constitucional, com a perspectiva de não se propor a formular aprioristicamente as respostas e os conceitos, esse direito estava e estará mais atual do que nunca.
Dou-lhe alguns exemplos: num deles, não faz muito tempo, no STJ, o Ministro Rui Rosado de Aguiar, considerou incerta, inserida no conceito de família, o fato de dois irmãos juntos viverem e constituíam, segundo ele, família para efeito de proteção legal à luz da lei que tutela o bem legal de família. Ora, percebe-se aí, portanto, o que esse tipo de reflexão já se projeta na jurisprudência. Não é um conceito a priori que se tem de família, mas um conceito que se constrói, e por isso se valoriza sobremaneira a atividade criadora da jurisprudência. E é nessa perspectiva, portanto, que nós estamos a falar, desses fenômenos que, portanto, .... o desenvolvimento do direito civil, renovam e reformulam as suas bases e, falamos, então, hoje no direito civil contemporâneo, que nasceu por agora; por certo estava, na década de setenta, na Itália, nas obras de Pietro Barcelona, Natalino ..., Pietro Perlingieri; nas obras, em Portugal, de Orlando de Carvalho e, mais recentemente, do professor Joaquim Ribeiro de Souza; em alguns professores aqui da América: Marcela Castro de Cifuentes, na Colômbia, Carlos Fernández Sessarego; na Argentina, Ricardo Luis Lorenzetti, Jorge...., para citar alguns; no Brasil, e para citar aqui, o professor Gustavo Tepedino; enfim, um conjunto de idéias que vai aos poucos se formulando e que, enriquecendo, precisamente nessa possibilidade de dar um suporte doutrinário à concepção, segundo a qual, as relações interprivadas não estão mais subssumidas apenas a uma unidade normativa codificada, que apresenta respostas apriorísticas para todas as soluções e para todas as situações concretas. Se isso aumenta a incerteza e a insegurança, nós percebemos que, de fato, o direito deixa de considerar os sujeitos como cidadãos, virtuais e abstratos, para ver que a condição humana de carne e osso é recheada de incerteza e também de insegurança. Isso nos mostra, portanto, que o direito se vale de critério de verdade, mas que jamais encontrará a verdade propriamente dita, porque situações há em que soluções antagônicas são possíveis no juízo, por exemplo, de ponderação de valores ao qual o sr. Luis Roberto acaba de referir-se. Nesse sentido, portanto, essa idéia da constitucionalização formou razoavelemente uma base doutrinária. Além disso, do ponto de vista jurisprudencial, citei o exemplo do acórdão do Ministro Rui Rosado de Aguiar; há, desde 1991 para cá, votos expressivos da autoria, da lava do Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, especialmente em matéria de família, quando o STJ passa a admitir, por exemplo, ação de investigação de paternidade em face dos demandos, suposto genitor, casado com outra mulher, que não a mãe, que é a representante legal do investigante naquela demanda, superando, portanto, aquele artigo ou dipositivo de interdição, que era o art. 358, do Código Civil brasileiro; esse tipo de pronunciamento jurisprudencial, já é o nascedouro, ou já é uma sintomatologia desta ordem de idéias que vai aos poucos se colocando.
E no campo legislativo temos, não apenas a Constituição Federal, de 1988, porque a Constituição não é apenas a Constituição Federal de 1988; temos, na verdade, um marco legislativo impressionante no Brasil que, na verdade, divide a história republicana brasileira, e se projeta como um divisor de águas não apenas para o passado, mas também para iluminar um pouco do nosso futuro ainda por construir. Nessa perspectiva do ponto de vista legislativo há uma base constitucional, há uma base do que se chamou dos microssistemas e que já foram mencionados: Estatuto da Criança e do Adolescente, o Código de Defesa do Consumidor, a Lei dos Companheirados ou dos Conviventes, para citar apenas alguns exemplos, que são ou devem ser, necessariamente atualizados, mas o seu fio condutor está centrado nessa principiologia axiológica de índole constitucional. É aí que chegamos no presente que vivenciamos. Vale dizer, vivemos, então, esse momento ao mesmo tempo interessante e paradoxal. Vivemos um momento em que temos uma base doutrinária, legislativa, de indicadores jurisprudenciais da constitucionalização do direito civil, do direito privado; e, ao mesmo tempo a vigência, de uma nova codificação que procura, por exemplo, ao manter a parte geral, manter aquela idéia fruto da pandectística alemã, em face da qual era possível enjaular um conjunto de definições, o conjunto das situações especiais e específicas da codificação, em matéria de personalidade, capacidade, patologia dos negócios jurídicos, da relevância jurídica do fluir do tempo, nulidade, anulabilidade e assim por diante. É esse tempo, de um certo paradoxo, que desafiam o nosso trabalho que é de fato um trabalho de construção.
Mas, colocadas as coisas nesses termos, em segundo lugar, podemos, então, quiçá, indicar quais são as três perspectivas, ou quais são os três elementos que caracterizam o que podemos chamar de constitucionalização do direito civil. Esses três elementos ou três horizontes que vou citar têm um pressuposto que é o direito constitucional como direito operativo; ou, em outras palavras, toma como pressuposto que o princípio ou a regra constitucional deve operar nas relações interprivadas. Talvez os senhores estejam lembrados que, logo que a Constituição foi publicada, escreveu-se no Brasil, vozes autorizadas da doutrina do direito civil, que nós não podíamos, por exemplo, aplicar de imediato o princípio da igualdade entre o homem e a mulher porque o Código Civil não havia sido alterado, e defendia-se, então, a idéia de que não seria possível, nem mesmo o julgador aplicar o princípio constitucional porque isso representaria - e essa expressão foi usada - um salto sobre o legislador ordinário. Evidente, que nós, em momento algum, estivemos entre aqueles que subscreviam essa ordem de idéias, mas de qualquer sorte, em muitos dos nossos manuais, continuaram ainda a ser evidenciadas as razões, não apenas diferenciadoras, mas discriminatórias da condição feminina, dizendo, por exemplo, que enquanto não se alterasse o Código Civil a Constituição previa uma igualdade de direitos, mas não uma igualdade de exercício, o que significava, na prática, fazer uma tábula rasa dessa grande conquista que, aliás, era prévia à própria Constituição porque era um imperativo de dignidade ética e humana entre o homem e a mulher que, embora diferentes, são substancialmente iguais.
Nessa perspectiva, portanto, a premissa desses três elementos, ou desses três horizontes é tomar a Constituição com o seu valor operativo. E é nessa dimensão que entendemos que os princípios constitucionais são vinculantes, como, alíás, desde algum tempo defendeu-se, em Belo Horizonte, já em 1986, numa tese apresentada pelo desembargador Francisco José Ferreira Muniz, do tribunal de Justiça do Estado do Paraná, que foi o nosso professor de direito civil, que princípio constitucional é norma e, portanto, vinculante ao intérprete ou aplicador.
Quais são esses três horizontes da constitucionalização? Em primeiro lugar, ao falarmos de constitucionalização estamos a falar de uma dimensão que é correta, embora seja insuficiente, que a sua dimensão de natureza formal; vale dizer: constitucionalização pode representar nessa primeira dimensão correta, mas incompleta; pode representar a idéia de que os princípios ou regras estão expressamente positivados no texto constitucional. Assim, por exemplo, os direitos fundamentais da caput do art. 5º; a função social da propriedade, a partir do art. 180 e seguintes; os artigos que cuidam da ordem econômica e assim por diante. Esses preceitos, por assim dizer, contidos nesses enunciados expressos corresponderiam a essa idéia primeira, como disse, correta, mas incompleta, de uma constitucionalização no seu sentido formal.
A isso se agrega uma segunda dimensão, uma segunda caracterização do que podemos chamar de constitucionalização. É a percepção da constituição no seu sentido substancial. Antes, lhes disse, de passagem, que a Constituição não é apenas a Constituição Federal de 1988; podemos dizer, portanto, que a Constituição não é apenas o seu texto positivado e impresso. Até porque há princípios que são funcionais, que decorrem de princípios constitucionais e expressos. O exemplo, acabei de citar o Superior Tribunal de Justiça que passou a admitir a investigação de paternidade em face de genitor casado com outra mulher que não a mãe da criança que representa a criança investigante. Esse princípio atende a um princípio constitucional expresso que é da igualdade entre as diferentes espécies de filhos, mas também atende a um princípio constitucional implícito que é o princípio da inocência que, embora pareça uma palavra, digamos, inocente mas na verdade tinha toda uma percepção de juízo negativo à luz daquele sistema anterior do Código Civil de 1916, à luz do art. 358, quando não admitia o reconhecimento de filhos extramatrimoniais quer fosse esse reconhecimento forçado, quer fosse o reconhecimento voluntário. Ora, se A e B tinham um filho, à luz daquele dispositivo 358 e se realizava, portanto, essa façanha genética, o não reconhecimento da criança fazia com que a criança não pudesse buscar a revelação da sua paternidade e, de certo modo, era a criança, por assim dizer, sancionada pela conduta - que se há alguém para ser sancionado certamente não é aquele que depende dessas circunstâncias que são as esquinas da vida que têm mais dobras do que a vã imaginação do legislador possa operar.
Ora, nessa perpectiva, portanto, há uma segunda dimensão da constitucionalização, que é essa que não permite resumir a constitucionalização à sua dimensão apenas de ordem formal e alcança também uma dimensão material ou substancial.
E em terceiro e último lugar, falar-se em constitucionalização significa distanciar-se da idéia de que nós estamos apenas a nos referir a um marco histórico, como o da Constituição Fedral de 1988. A constitucionalização é na verdade o reconhecimento que hoje mais que ontem, quiçá, menos que amanhã, o direito, de um um modo geral, mas o direito civil de um modo substancial é um direito que se constrói e reconstrói continuadamente. Se os senhores lembrarem (os que leram certamente lembrarão), o conto da ilha desconhecida de Saramago, que mencionei antes e menciono novamente agora; e que desejava um barco, uma nau para ir até a ilha desconhecida, e o rei, depois de várias negativas, lhe concedeu o barco, intrigado para saber qual era a ilha desconhecida. E eis que numa bela manhã, vai singrando ao mar um barco, uma nau cujo nome era “a ilha desconhecida”. De modo que muitas vezes se percebe que o ponto de chegada não é exatamente o outro lado da margem, também não é a terceira margem do rio, de Guimarães Rosa; mas o ponto de chegada é, a rigor, sempre uma estação que se reconstrói quando se se aproxima daquele denominado ponto, daquela denominada margem; vale dizer, é uma alavanca contínua de construção e reconstrução dos conceitos. Exemplo disso: o Supremo Tribunal Federal, na súmula 621, os senhores bem se lembram disso, não admitia, por meio de embargos de terceiros, proteção possessória ao promitente comprador se o compromisso não estivesse registrado. Que orientação era essa? Orientação coerente com a idéia do Código Civil, da formalização dos registros e, evidentemente, coerente com a formalização que daí se exigia à luz do pensamento do Ministro Moreira Alves, o inspirador dessa ordem de idéias, coerente, claro, com a ordem de idéias do século XIX e, obviamente, por aí se estacionou. Nessa perspectiva, o Superior Tribunal de Justiça começa a aplicar esses temas e edita a Súmula 84, que reconhece a boa-fé, que reconhece o fato do compromisso estar quitado, que reconhece a posse como uma circunstância pública e notória e passa a admitir os embargos de terceiro independentemente do registro para tutelá-lo - não o senhor, mas o possuidor, na forma do artigo 1046, do Código de Processo Civil. Ora, isso significa portanto, que essa ordem de idéias vai evidenciando que esse direito se constrói e reconstrói a partir da formulação doutrinária, da formulação jurisprudencial e muitas vezes da formulação legislativa.
E são esses três horizontes que nos parecem indicar as características desse movimento de constitucionalização.
Para arrematar, talvez, caberia, então, em terceiro e último lugar perguntar para onde vamos, nesse momento, em matéria de constitucionalização do direito privado. A perspectiva que se coloca há de colocar também em autocrítica a idéia de que não se pode fazer tudo migrar para o direito constitucional, sob pena de criarmos uma macrocodificação, sob pena de trocarmos o significante código por Constituição e o significado não se alterar. Na verdade, talvez marchemos muito mais para aprofundar esse fenômeno, muito mais para, agora, à luz do Novo Código Civil brasileiro compreender que de fato o caminho vai se fazer caminhando, na perspectiva de um direito cujos princípios e regras estão seguramente sendo continuadamente reconstruído. A crítica que há de ser feita, portanto, é que não se pode resumir esse fenômeno todo a um texto constitucional expresso e o nosso desafio é compreender ou tentar vivenciar com alguma tranqüilidade - porque, evidentemente, que dissipar a angústia é impossível; aliás, um pouco de angústia é sempre salutar e criativa - para que nós possamos, nessa perspectiva, edificar, na prática, o Código do século XXI, subssumido a uma principiologia axiológica de índole constitucional. Principiologia para valorizar os princípios constitucionais como, por exemplo, o da igualdade; axiológica, porque todo juízo é um juízo de valor: quem diz alguma coisa diz, ainda que não diga expressamente, porque diz nas entrelinhas, diz, mesmo não dizendo. Aliás, o discurso jurídico é pródigo em dissimular: não raro, diz-se algo querendo dizer outra coisa e, muitas vezes, diz-se a outra coisa para dizer algo que não foi dito. Não raro, na sentença muita outra adjetivação gostaria o juiz de ali inserir, mas ele se queda, comedido; o advogado, também, poderia assim proceder. De modo que o discurso jurídico, não raro, é um discurso que na sua aparência não revela o que está na sua essência. E talvez é isso que, do ponto de vista humano, nos chame mais a atenção nesse momento. Nós vivemos um momento em que se volta a enfatizar a idéia do direito como técnica, a idéia do direito como instrumento, a idéia do direito ligado à eficiência, como se a eficiência pudesse ser desconectada da idéia de justiça. Mais do que nunca é preciso dizer que o direito está no campo das ciências humanas, está, portanto, também no campo da arte, está, portanto, no campo atinente à condição humana que não se submete a equações lógicas pré-ordenadas, embora, evidentemente, que componha um sistema que torne a vida social possível, um sistema aberto, poroso e plural, que permita que todos nós façamos um pouco menor a tragédia humana contemporânea; que nos permita aqui, hoje, discutir um Código, quando nesse momento, pessoas que nós sabemos aonde, a vida estão perdendo, para que nós não percamos não apenas a esperança, mas não percamos a confiança e a fé de que somos protagonistas de alguma história. Muito obrigado.

segunda-feira, maio 02, 2005

Palestra de Sylvio Capanema

Meus amigos, em meu nome pessoal e no do CEPAD eu lhes dou as boas vindas a mais esse seminário por nós organizado, e que se destina, precipuamente, ao processo reciclagem e atualização profissional dos que militam na área do direito em qualquer de seus segmentos. O CEPAD percebeu antes de muitos que é indispensável ao advogado moderno, nessa época de verdadeira ebulição intelectual em que estamos mergulhados na virada do século, atuar, no sentido de manter essa atualização, essa reciclagem. Ninguém mais do que o advogado tem esse compromisso permanente com o estudo. Imaginamos, então, de tempos em tempos, organizar esse tipo de trabalho, voltado especificamente para certos temas que vão ficando esmaecidos em nossa lembrança profissional, ou então estão submetidos a uma mudança legislativa ou jurisprudencial.
Numa pesquisa que organizamos no próprio CEPAD, verificamos, então, que os advogados se ressentem dessas noções básicas que nos são administradas nas faculdades logo no início do nosso curso, geralmente na cadeira de Introdução à Ciência do Direito. Essas noções sobre os conceitos de direito objetivo, direito subjetivo, direito potestativo, faculdade jurídica, a questão da eficácia da lei. Em suma, matéria que serve de alicerce doutrinário, que suporta todo o arcabouço do edifício do direito civil. Daí a nossa idéia de abordar especificamente esses temas. É claro, sem nenhuma veleidade de um grande mergulho doutrinário. Não estamos aqui para fazer uma verdadeira reciclagem teórica apenas, ou doutrinária. Queremos ver se projetamos esses conceitos o mais possível nos seus aspectos ou reflexos práticos.
Também tivemos uma idéia, não sei se vocês aprovam: preparamos, então, uma espécie de “libreto da ópera”, um resumo desta palestra, para evitar que vocês desviem, inclusive, a sua atenção durante a palestra fazendo anotações. Eu acho que, neste caso, nesta nossa palestra não haverá necessidade, a não ser aqui ou ali, se vocês sentirem isso, de anotar os eventuais conceitos que vamos emitir, porque estarão todos aqui, inclusive as principais citações, definições que muitas vezes se perdem na memória, estão todas aqui transcritas nesse resumo que vocês, então, poderão levar. Assim, acho que isso vai, não só facilitar o acompanhamento da palestra, como - o que é mais importante - vai também permitir que ela fique mais tempo perpetuada em suas memórias. Essa é a explicação inicial que queríamos fazer.
Amanhã estará aqui o professor Bermudes, também para abordar alguns temas processuais. E essa é a idéia do CEPAD: sempre juntar um tema de direito material, do direito civil, a um tema de direito processual e com isso atender a essas duas áreas em que o advogado militante está sempre atuando.
A primeira idéia, então, que nos cabe reavivar em suas memórias é a da relação jurídica da qual, como todos nós sabemos, emerge o direito objetivo e o direito subjetivo e também, como veremos, o direito potestativo.
Todos nós sabemos que o homem vive na sociedade relacionado permanentemente a outros homens. Aliás, a palavra relação vem do latim relatio, que significa referir-se. O homem em sociedade percebeu, intuitivamente, que era preciso somar os seus esforços aos de outros homens para atingir aos seus objetivos, para lhe tornar mais fácil enfrentar o desafio de uma natureza, na época, extremamente hostil ao próprio homem. Ele, então, começou a referir-se, a relacionar-se com outros homens. Essas relações, então, que nós chamamos de relações sociais, se desenvolvem em diferentes níveis. Temos relações afetivas, que nos ligam, portanto, a outros homens, como, por exemplo, amigos ou parentes; temos relações religiosas; temos relações esportivas; temos relações amorosas. Em suma, há uma série de relações que pontilham o nosso dia-dia. Muitas dessas relações permanecem para sempre no campo das relações sociais, ou seja, não repercutem no mundo do direito. Mas, muitas dessas relações são qualificadas pela norma jurídica que lhes dá, então, um efeito jurídico. E quando isso ocorre, ou seja, quando a norma jurídica qualifica essa relação social, atribuindo-lhe um efeito jurídico, essa relação social consegue, então, transformar-se em relação jurídica. Portanto, o direito consegue através da norma jurídica transformar a relação social em relação jurídica. Daí se depreende que nessa relação jurídica, criada pela própria norma jurídica, vai dessa relação emergir, de um lado um direito e de outro um dever ou uma sujeição, como veremos a seguir.
Daí, meus amigos, há dois pressupostos lógicos da relação jurídica. Para que haja uma relação jurídica é preciso, portanto, que, primeiro, tenhamos duas ou mais pessoas para que, entre elas, se estabeleça esse ponto de referência. Em segundo lugar, é preciso uma norma jurídica que qualifique essa relação. É da conjugação desses dois pressupostos lógicos que, então, nasce a chamada relação jurídica. Daí, porque, pode-se afirmar, com o apoio da doutrina tradicional melhor, que a relação jurídica se desenvolve sempre entre pessoas. É uma relação, portanto, eminentemente, subjetiva. Vamos encontrar nos dois pólos da relação jurídica pessoas, que, obviamente, podem ser pessoas naturais, ou pessoas jurídicas, mas sempre pessoas que são, então, os sujeitos dessa relação.
A matéria não é, evidentemente, pacífica. Há alguns autores que vislubram a possibilidade de uma relação jurídica que se desenvolva entre uma pessoa e uma coisa que fica submetida ao seu poder. Assim é que esses autores apontam a propriedade, que é o mais pleno dos direitos reais, como um exemplo típico de uma relação jurídica que liga uma pessoa a uma coisa. Mas, a doutrina, como lhes digo mais respeitável, repudia essa tese, entendendo que a relação jurídica só se pode estabelecer entre pessoas e jamais entre uma pessoa e uma coisa, como ocorre nos direitos reais. O que acontece nesses direitos reais, segundo a melhor doutrina, é que mesmo neles há uma relação intersubjetiva: de um lado teríamos o titular desse direito real, por exemplo, o proprietário, no caso da propriedade; e de outro lado, teríamos também pessoas, que são os demais membros da sociedade, para os quais nasce o dever jurídico de respeitar esse direito real, não se apropriando da coisa sem a autorização do proprietário. E a coisa seria, então, não um dos pólos da relação jurídica, e sim, o seu interesse ou o seu objeto. Essa, portanto, me parece, realmente, a doutrina melhor, limitando a relação jurídica sempre a pessoas.
Eu transcrevi nessa minha apostila, nesse projeto de apostila uma lição, sempre respeitável, de um dos grandes nomes do direito brasileiro, sempre lembrado com saudade e respeito, o prof. San Thiago Dantas, que honrou e dignificou a Faculdade onde me formei, a Faculdade Nacional de Direito; e lá, dizia San Thiago Dantas: todas as vezes em que uma relação social é especialmente qualificada pela norma jurídica, chamamos tal relação de relação jurídica. Note-se, então, que a relação jurídica é sempre uma relação entre os homens. Não é relação jurídica aquela entre o homem e a coisa, embora alguns pretendam que os direitos reais, principalmente os de propriedade, são relações entre o homem e a coisa. Mas não é tal: no seio de uma relação jurídica pode se estabelecer francamente uma dependência qualquer entre uma coisa e a vontade de uma pessoa, mas essa dependência, esse interesse, que pode prender a coisa ao homem, não faz parte da relação jurídica. Em suma: ele é o seu objeto - a coisa. Eu acho que essa lição de San Thiago Dantas é muito oportuna para ressaltar esse equívoco, muitas vezes cometido por nós, de vislumbrar na propriedade, ou nos outros direitos reais, uma relação jurídica, tendo de um lado uma coisa, e de outro, uma pessoa.
O professor e também saudoso, desembargador Paulo Roberto de Azevedo Freitas, numa síntese brilhante, numa aula na Escola da Magistratura, resumiu tudo isso com uma única frase, dizendo que na relação jurídica há uma norma jurídica que qualifica uma relação social. Portanto, vocês percebam que sempre há uma norma jurídica que antece a relação jurídica, pois é essa norma jurídica que qualifica a relação que era, antes, meramente social e agora se transforma em relação jurídica.
Nesse tema nós também fomos colher algumas noções teóricas muito práticas, inclusive o que parece incoerente, mas não é, porque foi o Kant que nos ensinou que não há nada mais prático do que uma boa teoria; então, o professor Mota Pinto, que é o catedrático de direito civil, da Faculdade de Coimbra, que nos visitou, inclusive, recentemente, também resume a relação jurídica como sendo uma relação da vida social, disciplinada pelo direito, mediante a atribuição a uma pessoa de um direito subjetivo, e a correspondente imposição a outra pessoa de um dever ou de uma sujeição. Vamos analisar esse conceito do notável jurista lusitano: reparem que essa definição tem uma grande vantagem. Porque ela começa a vislumbrar, ainda que incipientemente, a figura do direito subjetivo e do direito potestivo. Porque reparem que ele destaca que na relação jurídica, vai surgir, de um lado, um direito subjetivo; e de outro, um dever ou uma sujeição. Ora, se do outro lado do direito subjetivo, criado pela relação jurídica, estiver um dever jurídico, nós teremos um direito subjetivo stricto sensu. No direito subjetivo, nós temos exatamente isso: um dos lados dessa moeda, é o direito subjetivo, o poder de exigir um comportamento de outrem; e de outro lado, o reverso dessa moeda, é exatamente o dever jurídico que recai sobre os ombros da contraparte. Mas, o professor Mota Pinto diz que também do outro lado do direito subjetivo pode haver, não um dever jurídico, e sim, uma sujeição. E aí começa a aparecer a noção do direito potestativo. Então, temos nessa definição, repito, ainda que incipietemente, a figura do direito subjetivo, propriamente dito, e do direito potestativo. A crítica que se faz ao professor Mota Pinto é de que, com esta definição, ele coloca o direito potestativo como uma espécie de direito subjetivo, ou uma subespécie, se vocês preferirem. Uma dependência umbilical, portanto, entre o direito potestativo e o direito subjetivo, quando eu, pessoalmente, me filio à corrente que vislumbra uma autonomia no direito potestativo. Ou seja, o direito potestativo não seria uma espécie de direito subjetivo e, sim, uma figura autônoma com todo o seu contorno e características como nós veremos a seguir. Mas de qualquer maneira a definição do professor Mota Pinto eu fiz questão de transcrever porque já tem esse mérito de nos mostrar que da relação jurídica pode, então, surgir o direito subjetivo e o direito potestativo.
Vamos começar, então, examinando o direito subjetivo. Para que possamos entender bem isso temos que partir da noção do direito objetivo, aquilo que os romanos, com muita felicidade, chamavam de norma agendi - ou seja, as normas de agir de uma sociedade. Quando o homem passou a viver em sociedade percebeu logo que não poderia agir como melhor lhe aprouvesse, como melhor atendesse aos seus interesses, como lhe fosse mais cômodo ou confortável. Isso levaria a sociedade humana a um verdadeiro caos. Era preciso, então, que o homem se auto-limitasse, abdicasse, voluntariamente, de uma parcela da sua independência em benefício do equilíbrio do grupo. Começaram, então, a surgir essas normas de comportamento, elaboradas pelo próprio grupo, visando o seu equilíbrio. E essas normas eram sempre restritivas de comportamentos para que se permitisse apenas ao homem fazer aquilo que interessasse ao grupo, e não exclusivamente a ele. Essas normas de comportamento, essas normas de agir é que constituem o que nós chamamos o direito objetivo de uma sociedade. Essas normas de comportamento também tiveram de ser, obviamente, sancionadas, porque, como eram restritivas da liberdade do homem, é claro que haveria sempre uma natural resistência do homem ao seu cumprimento. O homem é por natureza egoísta, ele quer sempre fazer exclusivamente o que lhe interessa, o que reverte em seu proveito. Então, normalmente, ele reage a qualquer norma que lhe restrinja a liberdade. E se não houvesse, desde logo, uma cogência nessas normas, e, o que mais importante, uma sanção cominada ao seu inadimplemento, de nada adiantaria a sua edição. Então, essas normas são sancionadas e cogentes para que todos os membros daquela sociedade se subssumam ao regime, pela própria sociedade, estabelecido.
Esse direito objetivo, então, de um povo, estabelece esquemas abstratos. Daí porque os romanos chamavam - são meras normas de agir. Vamos a um exemplo: é uma norma de direito objetivo brasileiro, que os descendentes herdarão bens dos seus ascendentes. Isso nos pareceu justo e necessário, porque os nossos bens, após a nossa morte, se transmitam a nossos filhos, aos nossos descendentes, pertuando, portanto, na família, o patrimônio. Mas isso é um esquema abstrato, isso não permitirá a um filho, enfrentando dificuldades financeiras, exigir do pai a entrega dos seus bens - porque, repito, isso é uma mera norma de agir, um esquema abstrato. Também é uma norma de direito objetivo que os devedores deverão pagar as suas obrigações, entregando aos credores as respectivas prestações. Isso é uma norma de agir, mas é um esquema abstrato. O locatário, por exemplo, tem que pagar o aluguel ao locador: é um esquema abstrato. Pois desse direito objetivo, ou seja, desse conjunto de normas de agir, abstratas, emerge, então, o direito subjetivo, que é, ao contrário, não mais um esquema abstrato, mas um esquema concreto, uma faculdade de agir - a facultas agendi. E qual seria a mola propulsora, a centelha criadora do direito subjetivo? Ou seja, qual a força que transformaria o esquema abstrato do direito objetivo, em esquema concreto do direito subjetivo? É o fato jurídico. Quer dizer, o fato jurídico é aquele acontecimento natural e humano, em virtude do qual nasce, ou se preserva, ou se modifica, ou se transfere, ou se extingue uma relação jurídica - no direito, em última análise. Então, o fato jurídico transforma aquele esquema abstrato em concreto. Vamos continuar no exemplo: é norma agendi, como lhes falei, que os filhos herdam os bens dos pais. Para que o filho passe a ter a faculdade de agir, reivindincando a herança das mãos de quem o devidamente estiver, é preciso que ocorra o fato jurídico - que é a morte do pai. Então, a morte do pai, que é um fato jurídico, porque foi um acontecimento natural que produziu o nascimento desse direito, então esse fato jurídico transformou para esse filho o que era mero direito objetivo em direito subjetivo. E aí ele já tem a faculdade de agir. E aí ele já pode, então, reclamar a herança.
Imaginemos que José aluga o seu apartamento a João, que passa a ser o seu locatário. Aquilo que era mero direito objetivo que eu lhes falei, o locatário tem que pagar o aluguel ao locador, agora é um esquema concreto: João que é o locatário terá que pagar o aluguel a José, que é seu locador. E José terá, então, direito subjetivo a esse aluguel. Então vocês estão vendo que o direito subjetivo é sempre precedido do direito objetivo. Ele nasce do direito objetivo graças à força criadora do fato jurídico. Daí a importância extraordinária do fato jurídico para o direito.
Também, procurei, a cada uma dessas noções, destacar uma citação clássica de um autor consagrado, para, inclusive, enriquecer, se necessário, a utilização desses conceitos numa petição, numa defesa. E me pareceu que Pontes de Miranda e San Thiago Dantas - mais uma vez citando o grande mestre - foram muito oportunos a analisar isso. Por exemplo, diz Pontes de Miranda: “Não é possível conceber-se o direito subjetivo, quer historica, quer logicamente, sem o direito objetivo, de modo que, incidindo a regra jurídica, ele seja o que resulta do lado positivo da incidência.” Quer dizer, ele mostra que o direito subjetivo resulta do direito objetivo quando sobre ele incide um fato jurídico. Não há direito subjetivo sem regra jurídica - que é o direito objetivo - que incida sobre suporte fático - que é o fato jurídico - tido por ela mesma como suficiente. Porque isso também é importante que vocês se lembrem: no fato jurídico, que faz nascer o direito subjetivo, é preciso também que se conjuguem dois elementos: para que haja um fato jurídico é preciso, em primeiro lugar, que tenhamos um acontecimento. Fato é sinônimo de evento, acontecimento. A nossa vida é um rosário infindável de fatos, que nos alcançam a cada minuto de nosso dia. Agora, alguns desses fatos, permanecerão para o resto de nossas vidas como meros fatos. A maioria deles nós vamos nos esquecer, outros ficarão gravados em nossa memória, de acordo com a sua maior ou menor significação. Mas alguns desses fatos transformam-se em fatos jurídicos. Por que? Porque a eles se acopla a norma jurídica que qualifica esse fato. Ou seja, para que haja um fato jurídico é preciso, primeiro, um acontecimento e, em segundo lugar, uma norma jurídica que considere esse acontecimento hábil, ou apto a refletir-se no mundo jurídico, a produzir efeitos no mundo jurídico. Então, também no fato jurídico nós temos esses dois pressupostos: o acontecimento e a norma jurídica qualificadora que o considera hábil para produzir efeitos jurídicos. Daí o Pontes Miranda dizer que a regra jurídica é prios ainda quando tenha nascido no momento de se formar o primeiro direito subjetivo. Então, reparem que ficou bem clara essa noção. E o San Thiago Dantas, fala, ainda, de maneira mais elucidativa. Aliás, vocês vão perceber que o professor San Thiago Dantas que, infelizmente, não teve tempo de escrever um tratado de direito civil, o que nos ficou do professor San Thiago Dantas é a lembrança de suas aulas que eram copiadas por seus alunos e depois convertidas em apostilas, mas sem o aprofundamento, é claro, que ele poderia ter se escrevesse um tratado; mas era um homem que tinha múltiplas atividades - um político brilhante, foi primeiro-ministro desse país, na época do parlamentarismo; era um ministro de Estado, era um homem que se dividia, milagrosamente, entre a ciência do direito, entre as artes e as manhas da política; então, era um homem multifacetado, mas ele tinha um estilo extraordinário. E eu lhes digo isso porque tive a honra e glória de ter sido, ainda que por muito pouco tempo, seu aluno na Faculdade Nacional de Direito; logo depois, em razão de seus compromissos políticos, ele teve de se licenciar da cátedra, e aí foi substituído, também para grande sorte minha, pelo notável Miguel Maria de Serpa Lopes. Mas, então, o professor San Thiago Dantas tive um estilo extraordinário, as aulas dele eram acima de tudo lições de portugues, de estilo e notamos isso, embora, aqui e ali, se perceba um resvalo, que não foi culpa dele, e sim da transcrição de suas aulas. Mas vejam o estilo típico de San Thiago Dantas quando ele observa isso: “o direito do homem só nasce depois que nasceu o direito da sociedade. E isso quer dizer que só nasce no homem um título jurídico, uma faculdade de exigir alguma coisa depois que a sociedade, por meio de uma norma, declarou aos homens o que eles devem fazer. Depois, então, que a sociedade declarou que isto é feito assim, que isto produz tal efeito, que aquilo é proibido e, depois, que surgiu uma norma visando a composição dos conflitos e, conseqüentemente, a conduta dos cidadãos, é que nasce nos indivíduos isolados a faculdade de exigir, em seu proveito, o cumprimento dos deveres instituídos pela norma. E aí, sim, pode-se ter do direito subjetivo uma noção clara e praticamente utilizável. E poderemos, então, saber quando há direito subjetivos e quando não os há. ” E aí ele completa lá no fim: que o prios na ordem jurídica é a norma e que o direito subjetivo é um posterio, uma imanação dele.
Eu fiz questão de transcrever esse comentário de San Thiago Dantas porque não encontrei nada melhor que pudesse resumir toda essa evolução do nascimento do direito subjetivo emanado do direito objetivo. É uma lição que só um gênio como San Thiago conseguiria resumir em tão poucas palavras.
Há várias teorias explicativas, digamos assim, do direito subjetivo. Os juristas sempre se preocuparam em desvendar esse mistério, quer dizer, qual seria a natureza do direito subjetivo. É claro que nós não teríamos aqui nenhum tempo hábil para enfrentá-las todas. Talvez em uma semana de aulas repetidas não bastaria para esgotar o assunto. Eu, então, fiz aqui um resumo das principais teorias, das teorias mais respeitáveis sobre o direito subjetivo, ressaltando as duas linhas clássicas a respeito do assunto.
A primeira, é a chamada teoria da vontade, defendida por esse notável jurista alemão que foi Windscheid. Aliás, surpreendemente pouco conhecido entre nós, quando é um dos maiores jurístas da humanidade, a ombrear-se, sem nenhuma submissão hierárquica, a um Savigny.Windscheid é um pandectista, um romanista extrarodinário, fez parte da comissão revisora do BGB (Código Civil alemão), e Windscheid foi o grande defensor da teoria da vontade na explicação do direito subjetivo quando ele dizia que o direito subjetivo é um poder da vontade individual. E ele dizia que a pessoa tem um direito subjetivo quando a sua vontade é mais forte do que a vontade de outro, ou de outros sobre um determinado ponto. E como a sua vontade é mais forte do que a do outro, ele acaba, evidentemente, submetendo o outro à sua vontade e aí teria um direito subjetivo porque a sua vontade é mais forte do que a do outro, ou que a dos outros.
Em que pese o mérito incontestável de Windscheid, a sua teoria é muito criticada porque ela não explica, por exemplo, a presença de um direito subjetivo do louco, do menor, do incapaz em geral, que são titulares de direito subjetivo. Aliás, isso é um equívoco muito comum nos leigos. Os leigos imaginam que um louco, um recém-nascido, não possa ser titular de um direito, não possa ser um sujeito de direito, o que é um absurdo, porque se nós sustentarmos que os loucos não são sujeitos de direito, como os menores, ou como qualquer incapaz, nós estaríamos negando a eles a sua personalidade, o que representaria um retrocesso insuportável em tantos anos de avanços e conquistas doutrinários. Todos os homens, sabemos hoje, e esta talvez tenha sido a maior conquista do direito moderno, todos os homens são dotados de personalidade, todos os homens são pessoas e, conseqüentemente, sujeitos de direito, com aptidão genérica para adquirirem, ou transferirem direitos ou contrairem obrigações. Então o louco, o recém-nascido, o surdo-mudo incapaz de manisfestar vontade, o menor púbere, todos esses são titulares de direitos subjetivos, são sujeitos de direito. E seria difícil explicar isso pela teoria da vontade de Windscheid, porque nós não poderíamos admitir que a vontade dessas pessoas fosse mais forte que a de outros. Até porque a lei lhes nega a manifestação direta da vontade. Windscheid respondia, é óbvio, que nesse caso a vontade deles era a projeção da vontade de seus representantes legais. Mas de qualquer maneira é realmente um pouco complicado explicar direitos subjetivos dos incapazes pela teoria da vontade.
Surge, então, uma outra teoria, de um outro gênio germânico, von Ihering: a teoria do interesse. É de von Ihering uma definição que se tornou clássica, que se repete nas Faculdades de direito muitas vezes sem que os alunos entendam bem. Isso também é um fenônemo nosso: nós repetimos essas frases, que se transformam em verdades absolutas, e não nos damos ao trabalho de examiná-las, ou, o que é mais importante: de entendê-las. Quem de nós já não ouviu a famosa definição de von Ihering sobre direito subjetivo? Direito subjetivo é um interesse juridicamente protegido. Por isso que a visão de von Ihering é a chamada teoria do interesse, quer dizer, o direito subjetivo seria um poder conferido à pessoa para proteger um interesse seu, individual. A teoria de Ihering, também, apesar de seu mérito, recebe sérias críticas, porque von Ihering relaciona sempre o direito subjetivo a um interesse. Haverá sempre um interesse que é protegido pelo direito, então transformado em direito subjetivo. Mas, meus amigos, todos nós sabemos hoje que há direitos sem interesse. É o caso do tutor, do curador, do pai que defende o patrimônio do filho: ele não tem interesse próprio, o interesse é de terceiro. Como há também interesses que não protegidos pelo direito. Então, não há, realmente, essa absoluta vinculação entre o direito subjetivo e um interesse. Por isso que a teoria de de Ihering, segundo seus críticos, também não nos dá todas as respostas.
Há hoje uma outra teoria que é a teoria da subjetivação da norma, segundo a qual o direito subjetivo não passa de um efeito do direito objetivo, individualizado e apropriado pelo indivíduo.
Como vocês vêem, meus amigos, quase sempre, no campo da doutrina não há nenhuma unanimidade quanto à natureza do direito subjetivo.
Vamos, agora, e isso é indispensável, analisar ou gravar algumas definições, entre as dezenas ou as centenas que estão aí à disposição dos pesquisadores. E eu selecionei esses conceitos, de alguns autores consagrados, para mostrar como essas definições refletem a posição doutrinária de cada um diante dessas vertentes teóricas.
Por exemplo, Manoel de Andrade - outro notável jurista português, colega de Mota Pinto, também da Universidade de Coimbra - diz que o direito subjetivo é o poder de exigir ou pretender de outrem um determinado comportamento positivo ou negativo. Não é preciso ser nenhum gênio para perceber, depois do que eu lhes falei, que Mota Pinto se filia à teoria da vontade. Reparem: o poder de exigir - e eu só posso exigir se a minha vontade é mais forte do que a do outro de quem eu estou exigindo o comportamento. Pois se a vontade do outro fosse mais forte eu diria: não vou conter esse comportamento. Então, vocês reparem que aí está a teoria da vontade. É uma definição muito empregada. Costuma-se dizer, nos bancos escolares, exatamente isso, que o direito subjetivo é esse poder que a lei atribui a alguém para exigir de outrem o bem da vida, uma prestação, que pode ser positiva ou negativa.
Já Caio Mário, reparem, define o direito subejtivo como o poder da vontade - e vejam que aí está, novamente, a idéia de Windscheid - para a satisfação dos interesses humanos, em conformidade com a norma jurídica. Aí Caio Mário, também com o brilho da sua erudição, consegue aproximar as duas idéias. É o poder da vontade, mas para a satisfação dos interesses humanos. E a definição de Caio Mário tem um mérito, porque ele diz que tudo isso só pode ocorrer em conformidade com a norma jurídica. Porque é evidente que esse poder, meu amigos, que as pessoas exercem sobre as outras, exigindo-lhes um comportamento, uma ação ou uma abstenção, exigindo-lhes um fazer ou um não fazer, um abster-se ou um tolerar que se faça, esse poder não pode surgir do bíceps, não pode surgir do bolso do dinheiro, não pode surgir do berço em que nascemos. Só há uma fonte hábil para se criar esse poder - que é a norma jurídica. Daí Caio Mário deixar isso bem claro, e me parece muito importante - poder da vontade não é da vontade do mais forte fisicamente, não é da vontade do mais rico, não é da vontade do melhor colocado na escala social: é a vontade de quem pode ter essa vontade em conformidade com a lei ou em razão da lei. Vamos a um exemplo: um advogado é contratado por um cliente para defendê-lo numa causa e ajusta os respectivos honorários. Presta o serviço, ganha a causa e aí, então, cobra os seus honorários. Ele tem direito subjetivo a esses honorários. Mas o cliente não os paga. Aliás eu escolhi esse exemplo porque, para a platéia aqui constituída na grande maioria de advogados, é um exemplo muito familiar. Isso tem se tornado, infelizmente, muito comum ultimamente, e foi uma das razões preponderantes que me fizeram, após 33 teimosos e orgulhosos anos de exercício da advocacia, transferir-me para a magistratura, após ter-me frustrado tantas vezes no momento de receber os honorários após os serviços prestados. Então, vocês reparem que o advogado ao prestar esse serviço a lei lhe confere o poder de exigir do cliente o pagamento dos seus honorários. Ele não vai pedir ao cliente que por gentileza, ou por benesse o cliente lhe pague. Ele vai exigir o pagamento porque ele tem, concedido pela lei, poder para isso. Ele é, portanto, o titular da coerção, ele, então, vai usar dos meios conducentes a compelir o cliente a lhe oferecer o bem da vida que ele persegue, que são os honorários. Então, Caio Mário deixou isso muito claro na sua definição, juntando a idéia do poder de vontade com a idéia do interesse humano e com a idéia de que tudo isso está submetido à lei.
E, finalmente, Orlando Gomes, que aí, sim, conseguiu uma síntese perfeita entre as duas posições. Orlando Gomes conseguiu na sua definição, também clássica, esse milagre de fundir todos esses conceitos. Diz Orlando Gomes que direito subjetivo é o interesse protegido pelo ordenamento jurídico - portanto, reproduzindo, quase ipsis litteris, a noção de Ihering - mediante um poder atribuído à vontade individual. Quer dizer, então fica nítido que Orlando Gomes conseguiu conciliar as duas vertentes, o que me parece sempre muito bom.
Mas, meus amigos, abandonando o terreno sempre enfadonho das definições, eu acho mais importante agora examinar as características do direito subjetivo. Isso tem muito mais sentido prático. O que nós vamos vislumbrar da estrutura de um direito subjetivo? Em primeiro lugar, meus amigos, a todo direito subjetivo corresponde um dever jurídico pré-existente. A isso vocês não tenham dúvidas. O direito subjetivo é como se fosse uma medalha em cuja face está exatamente o direito subjetivo, e na outra, o dever jurídico. O dever jurídico é o reverso da medalha do direito subjetivo. Esse dever jurídico é o dever de fazer ou não fazer, de dar, de abster-se, é, portanto, o comando imposto pela lei aos membros da sociedade. Por exemplo, pagar as obrigações de que somos devedores. Aliás, a palavra devedor, etimologicamente, significa isso: devedor é quem suporta um dever jurídico, o dever de pagar. Então, vejam que coisa interessante: o cliente, naquele exemplo que eu lhes formulei do advogado, tem sobre os seus ombros o dever jurídico de pagar os honorários, e o advogado tem o direito subjetivo a esses honorários. E isso, meus amigos, não vai falhar nunca. Toda vez que vocês estiverem diante de um direito subjetivo, procurem do outro lado, não há dúvida, há um dever jurídico correspondente.
Mas basta isso? Não. A segunda característica do direito subjetivo é que eles são por natureza violáveis. O que eu quero dizer com isso? Parece estranho, não é? Se o senhor está dizendo que é um poder que a lei confere a alguém de exigir uma prestação, como é que agora está dizendo que eles são por natureza violáveis? Por uma razão óbvia: os homens nem sempre cumprem os deveres jurídicos. Isso tamb;em faz parte do que eu chamo a falibilidade da alma humana. A fragilidade da alma humana. O dever jurídico é um comando imposto pela lei a todos os membros da sociedade para que adotem determinada conduta. Então a sociedade manda a todos os seus membros um recado: por exemplo, pacta sunt servanda - as obrigações são para serem cumpridas. Isso é um dever jurídico que pesa sobre os ombros de cada membro da sociedade. Quem se obriga não pode fazê-lo por uma aventura leviana, como uma brincadeira inconseqüente. Quem se obriga tem que saber que terá de pagar. Mas nem todos os devedores pagam. Aqui entre nós, as estatísticas da inadimplencia são assustadoras. Ora, como posso, então, meus amigos, exigir de todos os homens que cumpram os seus deveres jurídicos? Eles são freqüentemente violados. Então, os direitos subjetivos são violáveis, ou seja, é perfeitamente admissível que se fruste a expectativa do seu titular pela inadimplencia da contraparte. E quando isso ocorre, ou seja, quando a contraparte não cumpre o seu dever, surge o quê? A figura da lesão, da violação do direito, com o conseqüente nascimento de quê? Da ação correspondente a restaurar esse direito subjetivo violado. Então, vejam como tudo vai se encaixando: eu tenho o direito subjetivo aos honorários, o cliente, que tem o dever jurídico de pagá-los, não cumpre esse dever, portanto, viola o direito subjetivo do advogado, lesiona o advogado, e nasce para este a ação para restaurar esse direito, que é a ação de cobrança de honorários, de rito sumário.
Então, vem, agora, em decorrência disso, a terceira característica do direito subjetivo, que é a sua coercibilidade. De nada adiantaria ser titular de um direito subjetivo se não pudéssemos defendê-lo, ou restaurá-lo quando viesse a ser lesionado ou inadimplido. Então, o titular do direito subjetivo tem ou dispõe dos meios conducentes a compelir a contraparte a oferecer o bem da vida ou a adotar a conduta prometida. Então, ele pode se servir, inclusive, do judiciário. A parafernália do judiciário está lá pronta, à disposição do titular desse direito subjetivo violado para que ele o defenda, para que ele o respalde. Aí estão as ações correspondentes a cada um desses direitos subjetivos. Então, uma das características do direito subjetivo é essa coercibilidade. E o titular do direito subjetivo é o autor, é o iniciador dessa coerção, que ele poderá fazer, ou diretamente, quando possível, ou, então, o que é mais freqüente, já que não se permite na sociedade moderna fazer justiça com as próprias mãos, o titular do direito subjetivo vai se valer do judiciário, vai se valer da prestação jurisdicional para restaurar esse direito subjetivo.
E finalmente, como última característica do direito subjetivo, eu diria que ele é dependente da vontade do seu titular. Isso também é uma característica que às vezes nos esquecemos. O que é que eu quero dizer com isso? É que nenhum titular de direito subjetivo é obrigado a defendê-lo, a exercê-lo, ou a restaurá-lo. O advogado pode conformar-se com a censurável atitude do seu cliente e não mover um único dedo em defesa de seu direito, deixando até que prescreva a pretensão ao seu crédito. Então, não se pode ser compelido a exercer o direito subjetivo, ele está sempre subssumido à vontade do seu titular. O Estado manda o seguinte recado aos titulares de direitos subjetivos violados :estamos à sua disposição, com o Fórum de portas abertas, os magistrados lá apostos para atuar em sua defesa. Mas, se não quiserem exercer esses direitos ou defendê-los, o problema é de cada um, não vamos ser babá de ninguém para conduzi-los coercitivamente ao Fórum para que proponham as ações correspondentes. Estão aí, portanto, as quatro características do direito subjetivo. Resumindo: a pré-existência de um dever jurídico, a possibilidade de violação desse direito subjetivo com nascimento da ação correspondente; a coercibilidade do direito subjetivo; e, finalmente, a voluntariedade, ou seja, ele só é exercido, ou defendido, ou restaurado se o seu titular quiser.
E a estrutura do direito subjetivo, quer dizer, se nós quiséssemos, para usar a linguagem tecnológica de hoje, uma ultrassonografia do direito subjetivo, o que encontraríamos lá, na sua estrutura interna, no seu esqueleto? Em primeiro lugar um sujeito: todo direito subjetivo tem um sujeito. O sujeito é sempre uma pessoa - disso não tenham dúvida. Só pode ser titular de direito subjetivo quem é pessoa, seja pessoa natural, seja pessoa jurídica. Mas será sempre uma pessoa. Essa, aliás, é uma das decorrências da própria natureza humana, quer dizer, todo homem, como eu lhes falei, é pessoa e, portanto, podendo ser sujeito de direito. Claro, não preciso - tenho certeza - diante dessa platéia, lembrar, embora seja prudente, para evitar a ira das feministas presentes, que toda vez que estou me referindo aqui ao homem, como sujeito de direito, estou me referindo ao gênero humano, e jamais ao sexo. As mulheres, assim como os homens, são também pessoas e, portanto, sujeitas de direito. Bom, então o sujeito do direito subjetivo é sempre um homem - tido como gênero, e jamais como sexo. Esse sujeito também, é importante frisar, tem de ser determinado. Eu não posso ter um direito cujo titular seja é indeterminável. O que se permite é outra coisa: é que haja uma indeterminação provisória. Eu até preferiria dizer que pode se adimitir um direito subjetivo cujo sujeito seja determinável. Ele não precisa ser determinado, individualizado no momento da sua constituição, basta que seja determinável. Portanto, há uma indeterminação transitória. E eu vou dar exemplos clássicos: eu não posso fazer, por exemplo, um legado para os pobres assistidos pela Casa de São Luís, para a velhice? Eu não preciso no legado fazer a relação dos assistidos por essa casa de caridade: são os pobres que lá estão abrigados. Eu posso fazer um legado em favor de uma prole eventual de um parente. Como posso fazer um legado para pessoas que vierem a existir quando da minha morte. Então, vocês reparem que não há uma indeterminação permanente. Há, na verdade, um sujeito determinável, ou seja, no momento do exercício do direito já se saberá quem são os seus sujeitos.
A mesma coisa acontece na relação obrigacional. Quantos advogados imaginam, erradamente, que ao nascer a relação obrigacional já se tem de saber quem é o credor. O credor pode ser determinável, como ocorre nos títulos ao portador. Ou como ocorre na promessa de recompensa: quando eu anuncio a recompensa que me proponho a pagar a quem achar a pasta que perdi, eu não sei - no momento em que me obriguei, que é o momento em que se publica o anúncio da recompensa - quem será o meu credor. Mas ele é determinável: é aquele que se apresentar diante mim com a pasta. Então vocês reparem que é a mesma coisa, eu posso ter um sujeito determinável, mas não se admite um direito subjetivo com um sujeito permanentemente indeterminado.
Uma questão que eu não quero enfrentar muito profundamente porque temos sempre a angústia do tempo, mas que não deixa de ser instigante, e pelo menos eu levanto o tema para provocá-los ao estudo: haveria direito subjetivo sem sujeito? Vocês não podem imaginar o que a doutrina se debate diante dessa provocação. Eu acabei de dizer que na estrutura interna do direito subjetivo temos sempre um sujeito - determinável, pelo menos. E pode haver um direito subjetivo sem sujeito? Alguns autores e, meus amigos - senhores autores - sustentam que sim. Windscheid, a quem eu já me referi. Enneccerus, romanista conhecidíssimo; Brinz, famoso jurista, germânico também. E entre nós, para não dizer que não incluímos nesse rol tão respeitável um brasileiro, Carvalho de Mendonça, sustentam que é possível direito subjetivo sem sujeito. E citam alguns exemplos clássicos: o direito do nascituro. Todos nós sabemos que o feto no útero materno não é pessoa. O direito brasileiro adotou o sistema segundo o qual a personalidade surge no nascimento com vida. É primeira troca óxi-carbonica, ou seja, a primeira respiração que tem o condão mágico de nos atribuir a personalidade. Enquanto não respiramos não somos pessoas. Daí se dizer: nascido de ventre de mulher e tendo respirado é pessoa. Não tendo respirado não é pessoa. Portanto, o feto, o embrião não são dotados de personalidade. Se não são dotados de personalidade não poderiam ser, então, sujeitos de direito.
E como é que eu posso fazer a doação ao nascituro? Como é que eu pai, deslumbrado pela notícia que minha mulher me dá de que está grávida e temeroso que possa vir a morrer antes do nascimento, e querendo desde logo garantir o futuro de meu filho, eu não posso, imediatamente, fazer uma doação a ele, a um filho que já está gerado, mas que ainda não nasceu; esse filho que está gerado, mas que ainda não nasceu não é o donatário? E aí vinha Windscheid e dizia: taí o sujeito, é um direito que tem sujeito. Porque se ele é nascituro, se ele ainda não nasceu, não pode ser sujeito de direito. E quando acaba figura na escritura como donatário.
O abandono de um título ao portador: eu tenho em meu poder um título ao portador emitido por alguém, e abandono esse título, me dispo, voluntariamente, da titulariedade desse crédito. Se o título está abandonado temos aí um direito, porque o emitente é devedor, e continua devedor, e não temos sujeito. Windscheid dizia que nesses exemplos temos apenas uma destinação, mas não temos um sujeito.
A doutrina maciçamente majoritaria repele essa tese e se mantém fiel ao entendimento de que não pode haver direito subjetivo sem o sujeito, pelo menos, determinável.
No caso do nascituro a explicação é fácil: o nascituro não é titular de direitos, não é sujeito de direitos, porque não é pessoa, mas tem expectativas de direito que a lei protege. Essa foi o sistema que se encontrou para proteger esses direitos futuros do nascituro. E entre esses direitos futuros do nascituro, que a lei protege, o mais importante de todos é o direito de nascer (embora isso nada tenha a ver com a lacrimejante novela, que há alguns anos atrás, emocionou a sociedade brasileira). Por isso que o aborto é punido, porque o aborto frustra uma expectativa de direito que não é da mãe, é do nascituro, e que a lei protege. A mãe não pode dispor de uma expectativa de direito que não é dela. As feministas costumam argumentar que é um direito da personalidade dispor do próprio corpo. E como o nascituro está preso, umbilicalmente (sem nenhum trocadilho, rigorosamente na acepção da palavra) ao corpo da mãe, esta podia dispor dele, porque as pessoas podem dispor do seu corpo ou de partes do seu corpo. Mas as feministas, data venia, embora não queira transformar essa palestra num debate ético sobre o aborto, parecem se esquercer desta importante consideração de que o aborto frustra uma expectativa de direito que não é da mãe, que não é do corpo da mãe e, sim, do próprio nascituro. E nessa doação ao nascituro nós teríamos um ato jurídico subordinado a uma condição suspensiva. E qual é a condição suspensiva? A de que o donatário venha a se transformar em pessoa, o que é um aocntecimento futuro e incerto. Por que incerto? Porque ele pode nascer morto. Agora implementada a condição suspensiva, ou seja, havendo nascimento com vida o ato se torna eficaz. Então, não é que o nascituro seja o sujeito desse direito, porque ele não pode ser; o que fez foi um ato jurídico submetido a uma condição suspensiva, ou seja, a eficácia desse ato jurídico depende do nascimento com vida. Nascendo morto não é pessoa, conseqüentemente não pode ser sujeito de direito e o ato se frustra e se torna ineficaz. Não é nulo, é ineficaz. Então, de qualquer maneira haveria, nesse caso, o sujeito de direito, só que o ato tem a sua eficácia suspensa.
A mesma coisa no abandono do título: temporariamente, nós temos um sujeito apenas determinável, que será aquele que encontrar o título e ocupá-lo, apoderar-se dele.
Mas é uma questão instigante, como eu lhes falei e, na verdade, todos os seminários, todos os cursos, todas as palestras que se organizam no campo do direito, na minha opinião, devem funcionar como agentes provocadores. Quer dizer, eu nunca tive a menor veleidade de exaurir os assuntos sobre os quais me propus discorrer com vocês. O que eu sempre me propus foi funcionar como agente provocador, quer dizer, a mim cabe levantar esses temas, dar as suas principais vertentes para que cada um de vocês, que estão todos habilitados a isso, são todos advogados, portanto, com formação profissional adequada, para que, então, cada um de vocês formule as suas próprias idéias, desenvolvendo essas vertentes que eu apenas vou apresentando, ainda que superficialmente. Está aí o desafio: meditem e estudem mais sobre essa discussão tão provocante se seria possível ter o direito subjetivo sem sujeito.
O segundo elemento da estrutura do direito subjetivo - além do sujeito, é claro - é o objeto. Todo direito subjetivo tem um objeto. O objeto é a prestação, o bem da vida que o titular do direito subjetivo persegue. De nada adiantaria ter um direito subjetivo sobre o nada. Qual o interesse a proteger sobre o nada? Então, vamos ter sempre um objeto. Claro que esse objeto tem de ser lícito, tem que ser possível, tem que estar conforme a ordem jurídica e a moral.
E, finalmente, o terceiro elemento é poder sobre o objeto.
A classificação dos direitos subjetivos. Nós temos direitos subjetivos públicos e privados. Entre os públicos há um que todos nós conhecemos bem de perto: o direito de ação, é um direito subjetivo público. Temos os direitos subjetivos privados, aqueles que se desenvolvem na órbita do direito privado. Temos direitos patrimoniais, esses direitos patrimoniais, por sua vez, se dividem em direitos reais e direitos obrigacionais. Temos direitos subjetivos não patrimoniais, e posso lhes dar exemplos: os direitos da personalidade, que são direitos subjetivos não-patrimoniais: o direito à honra, o direito ao nome, o direito à imagem, o direito à privacidade, o direito ao pudor, o direito ao corpo, a partes do seu corpo, são todos direitos subjetivos não patrimoniais.
Essas foram, então, as observações que, repito, a titulo de provocação, elenquei sobre o direito subjetivo. E aí, meus amigos, rapidamente, porque daqui a cinco ou dez minutos teremos um intervalo (para grande alívio da platéia), vamos apenas como cenas dos próximos capítulos, desaguar agora na noção do direito potestativo, que está, segundo Mota Pinto, muito ligada a do direito subjetivo, embora, eu partilhe de opinião contrária de que o direito potestativo é autônomo.
O que seria um direito potestativo? Para que entendamos devemos partir etimologicamente da palavra: potestativo vem de potestas, que por sua vez é poder. Então o direito potestativo e o poder que a lei confere a certas pessoas de, por manifestação unilateral de vontade, influir na esfera jurídica de outrem. Isso é que é o direito potestativo, anotei eu aqui no resumo da ópera: é o poder conferido ao respectivo titular de produzir um efeito jurídico mediante uma declaração unilateral de vontade, só, de per si, com ou sem formalidade, ou integrada por uma ulterior decisão judicial. Por isso é que costuma-se dizer que direitos potestativos nos dão direitos a uma modificação jurídica. O que se deduz daí? É que nos direito potestativo o seu titular emite uma vontade - portanto, uma vontade unilateral - e essa vontade vai refletir na esfera jurídica de outra pessoa. E refletir como? Fazendo nascer um direito que não existia antes; ou, modificando um direito que existia antes; ou extinguindo um direito que existia antes. E isso é tido por manisfestação unilateral de vontade, com ou sem a concordância da contraparte, contra a sua vontade. Vejam que poder extraordinário, daí o nome - potestativo: eu emito uma vontade e esta vontade vai criar, modificar ou extinguir um direito para outra pessoa, portanto, modificar a esfera jurídica de outrem. É evidente que esse poder tão extraordinário também só pode emanar de uma única fonte: a lei. Também não pode emanar do dinheiro, da força física ou da posição social do seu titular. É a lei que cria e nos outorga esses poderes, poderes de modificar a esfera jurídica alheia. Eu elenquei aqui, a título de exemplo, alguns direitos potestativos mais conhecidos. Por exemplo: o direito de condômino de extinguir o condomínio. Estou me referindo, é claro, ao condomínio tradicional. Vamos imaginar uma fazenda muito grande que pertença a cinqüenta condônimos, cada um tenha 1/50 da fazenda. Numa bela manhã um deles acorda de mau humor, descobre que já não tem grande afeição aos demais e os reúne e lhes diz: quero extinguir esse condomínio , não quero mais integrar esse condomínio. É uma vontade contra quarenta e nove. Os quarenta e nove, ou seja, uma esmagadora maioria, poderão lhe dizer: negativo, nós somos quarenta e nove, a democracia nos ensina que prevalece sempre a vontade da maioria, e decidimos, os quarenta e nove, que esse condomínio se manterá e, portanto, você não poderá se afastar. O condômino recalcitrante, na sua modesta humildade da sua minoria, responderá: vocês é que estão redondamente enganados, eu estou me lixando para a democracia que, aqui neste caso não tem nada a ver. Esse condomínio vai se extinguir porque eu quero e vocês estão subordinados à minha vontade unilateral. E os quarenta e nove não têm como impedir isso. O que eles poderão fazer é outra coisa: eles poderão adquirir o quinhão do recalcitrante. Mas eu lhes pergunto: o que queria sair do condomínio não alcançou o seu objetivo, ele não extinguiu o condomínio? Obviamente, para ele; os quarenta e nove podem continuar condôminos entre eles, mas aquele que se rebelou contra o condomínio, sairá do condomínio mesmo que os demais queiram mantê-lo. Os demais não podem mantê-lo no condomínio, porque são a maioria. Os demais quando muito, repito, poderão adquirir o quinhão desse que quer sair.
Vamos a outro exemplo: o direito do mandante de revogar o mandato. Imaginem que eu vou viajar e peço aqui ao meu colega que aja como meu mandatário durante a minha ausência: receba o meu salário, o deposite, pague as minhas contas. Eu retorno, ele me presta contas, brilhantemente, uma atuação, como se esperava, impecável. Eu agradeço a atuação dele e digo: agora eu já voltei, não há mais necessidade nenhuma de você continuar como meu mandatário, está, portanto, revogado o mandato. Ele diz: eu fiquei muito feliz de ser seu mandatário nesse período, fiquei muito honrado e quero lhe comunicar que, ao contrário, eu decidi continuar como seu mandatário até o fim de seus dias. Eu responderei: eu acho que você não entendeu bem. Eu estou lhe comunicando que o mandato está revogado. Eu estou me lixando que você ficou satisfeito sendo mandatário, quer continuar sendo ou não. Mas já está revogado: se continuar praticando atos em meu nome vou responsabilizá-lo civil e criminalmente. Por que o mandatário não pergunta ao mandatário se ele quer continuar como mandatário: só comunica que o mandato está revogado. É verdade que o mandatário também tem o mesmo direito potestativo que é de renunciar ao mandato. E o mandante não pode dizer: não, eu estou muito feliz com os seus serviços e quero que você continue como meu mandatário até o fim dos seus dias. Ele responderá: só que eu não vou ficar mais um minuto como seu mandatário. É um direito potestativo meu, de renunciar a esse mandato a partir desse momento.
O direito do locador de denunciar a locação findo o prazo do contrato. Digamos, um contrato residencial de 30 meses. Ao final dos trinta meses uma carta avisa ao locatário: meu amigo, rua. Denúncia vazia. Não quero mais tê-lo como meu locatário, está denunciado o contrato. Mais por que? - pergunta o locatário - eu estou pagando atrasado? Eu não estou dizendo isso, eu estou apenas lhe comunicando que o contrato está denunciado, está resilido unilateralmente. Isso é um direito potestativo do locador. O locatário não tem como resistir a ele.
O direito do adquirente de rescindir o contrato, havendo vício redibitório, um defeito oculto. Ele chega para o alienante e diz: não quero mais manter o vínculo, está aqui de volta a coisa, restitua-me o preço. Pode o alienante resistir a isso? Não pode.
E finanalmente, a titulo de provocação - reconheço que a título de provocação - principalmente às mulheres presentes - lembra-se sempre o direito potestativo do marido anular o casamento com a mulher já deflorada anteriormente sem o seu consentimento. Está lá no art. 219, IV, do CC/16, direito potestativo, hoje, muito questionado. A doutrina, a qual eu me filio, entende que não existe mais esse direito potestativo do marido, por uma única razão: a partir da Constituição de 1988 não há mais direitos exclusivos de um só dos cônjuges. E como o Código Civil só permite esse direito potestativo ao marido, ou seja, a mulher não pode anular o casamento ao descobrir na noite de núpcias que o marido já tivera experiências sexuais anteriores; como a mulher não pode fazer isso, o marido também não pode mais anular o casamento pelo defloramento ignorado e anterior da sua mulher. É verdade que há uma corrente doutrinária que, me parece, data vênia, ridícula à luz dos costumes atuais. Há autores que dizem que esse direito potestativo continua, só que agora, também, da mulher. Ou seja, como a Constituição não permite direitos exclusivos, extende-se agora esse direito à mulher. Só que eu não conheço, acho muito difícil que se encontre uma mulher brasileira, principalmente hoje, que esteja interessada em anular o casamento só porque o marido já não era virgem. Eu acho até que pela cultura da sociedade brasileira o que preocupa as mulheres brasileiras é que o marido seja virgem, que ainda tenham de lhes ensinar algumas práticas na noite de núpcias. Então, não me parece que essa vertente seja a mais correta. O que me parece é que esse direito potestativo realmente não existe mais.
Mas, vamos imaginar que ainda exista: o marido descobre, então, na noite de núpcias, que a mulher já fora deflorada, sem o seu conhecimento, claro. Ele tem o direito potestativo de anular o casamento, a mulher não tem como resistir. Não adianta a mulher fazer uma oração ética sobre a importância da virgindade ou não na sociedade moderna. O juiz pode até ficar sensibilizado com esses argumentos, partilhar da mesma tese de que a virgindade não tem mais o valor que davam antigamente. Mas não é isso que se está discutindo, porque o marido está exercendo um direito potestativo: não quero mais manter esse casamento. Ele vai modificar a esfera jurídica da mulher. A mulher que entrou na ação de anulação de casamento casada, vai sair dela solteira. Reparem que o marido não está pedindo a condenação da mulher, a lhe oferecer uma prestação. Isso é um direito subjetivo, o marido não quer da mulheruma prestação, um bem da vida (que, diga-se de passagem, ela já ofereceu, antes, a outrem e, geralmente, com muito maior prazer). O que o marido quer não é, portanto, da mulher uma prestação; o que o marido quer é modificar a esfera jurídica da mulher: transformá-la de casada com ele em solteira.
Então, isso é que é o direito potestativo. Com esses exemplos eu acho que fica mais nítido. Quer dizer, esses titulares que eu acabei de citar - o condômino, o marido, o adquirente, o locador - essas pessoas têm, por lei, esse poder de manifestar unilateralmente uma vontade e produzir todos esses reflexos.
Sobre direito potestativo, para não dizer que não há uma definição, porque também o brasileiro adora definição. O brasileiro tem duas manias: saber quem foi o pai da idéia e a definição dos tipos. Enquanto não se dá uma definição os alunos acham que ainda não estão aptos a entender a matéria. É muito comum pedirem: professor, dá uma definição disso aí. Então, entre milhares de definições de direito potestativo e, reparem, eu não tive nenhuma preocupação de mostrar erudição, transcrevendo quinhentas definições. Eu fiz questão de, minuciosamente, ler muitas e escolher uma que sintetizasse o melhor possível a idéia; de todas as que eu conheço e li, me pareceu que a do professor gaúcho Ovídio Batista da Silva, um dos melhores processualistas brasileiros, um homem notável, ele diz que os direitos potestativos, em verdade, são poderes que o respectivo titular tem de formar direitos - eu acho essa expressão muito boa - de formar direitos - mediante a simples realização de um ato voluntário e sem que se exija do obrigado o cumprimento de uma prestação correspondente. Vejam aí a diferença entre o direito subjetivo e o direito potestativo: no subjetivo você quer compelir o obrigado a uma prestação correspondente. Aqui não: ao contrário das demais espécies de direito subjetivo - observação: das demais espécies de direito subjetivo. O professor Ovídio partilha da posição dominante de que o direito potestativo é uma espécie de direito subjetivo. Daí ele falar - “das demais espécies de direito subjetivo”. Então, ao contrário das demais espécies de direito subjetivo, nos denominados potestativos, o obrigado ao invés de prestar, satisfazendo a obrigação, apenas submete-se à vontade do titular do direito. Não precisa dizer mais nada. Tudo que eu poderia, da maneira mais eloqüente dizer sobre direito potestativo, não seria melhor do que isso. Está aqui perfeitamente definido o que é o direito potestativo, com a alusão a estas características. Quer dizer, o titular do direito potestativo alveja a outra parte, não para lhe exigir um comportamento, não para lhe exigir uma prestação; ele alveja a outra parte para exigir que ela se submeta à sua vontade. Daí porque, meus amigos, quando eu digo que o reverso da medalha do direito subjetivo é o dever jurídico; mas o reverso da medalha do direito potestativo é o estado de sujeição. Quer dizer, a todo direito potestativo se contrapõe alguém que está sujeito a esse direito, a esse poder. O estado de sujeição é como se fosse uma recriação da escravidão - evidentemente, no sentido figurado - por que? Porque não há como resistir à vontade alheia. Daí porque se diz que enquanto os direitos subjetivos podem ser violados, os direitos potestativos não, porque no direito potestativo não se permite à outra parte qualquer tipo de resistência.
Vamos a um intervalo e prosseguiremos depois. Muito obrigado.

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Deixem-me apenas corrigir um pequeno equívoco que o Capanema acabou de dizer, evidentemente ele não é especialista em família, brincando com a norma do Código Civil revogado, que permitia a anulação do casamento, por ter o marido descoberto, depois do casamento, que a mulher já havia sido deflorada - esse inciso não existe mais no NCC; ele diz que a norma está revogada desde o advento da Constituição de 1988. Não é bem assim. A CRFB/88 só erigiu a nível constitucional um princípio que já existia entre marido e mulher, no plano infraconstitucional desde o Estatuto da Mulher Casada - Lei n. 4.121. Então, esta norma do CC já era ilegal desde 1962. Passou a ser inconstitucional a partir de 1988. Ela não existe mais no NCC, e a razão disto é a violação, sim, da isonomia, como ele falou, mas a violação da isonomia exatamente porque não se poderia exigir do homem a virgindade. Ainda que o direito pudesse exigir, esbarraria numa questão técnica: não há prova técnica que possa precisar a virgindade masculina, por isso não se pode exigir a feminina. Nisso consiste a isonomia.

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...Continuando a palestra.
Também quero lhes dizer que o problema do tempo é sempre um desafio ao palestrante, e o Dr. Pedro Henrique, que honra e prestigia esse seminário, magistrado, lá no intervalo me falava sobre a estrutura do direito subjetivo. Eu falei do sujeito, falei do objeto, mas me esqueci de falar, embora esteja na apostila, sobre o terceiro elemento dessa estrutura que é poder do titular sobre o objeto e que esse poder emana exatamente da norma jurídica. Daí, aquela terceira teoria sobre a natureza do direito subjetivo, a teoria da subjetivação da norma, que apresenta o direito subjetivo como sendo um efeito do direito objetivo, um efeito produzido pela norma jurídica. Também quero lhes dizer, embora não conste da apostila e não haja tempo para debater mais profundamente, mas que há uma teoria, hoje, inclusive defendida por Kelsen (quem não reconheceria autoridade a Kelsen), da negação do direito subjetivo, ou seja, há teorias negativistas do direito subjetivo. Kelsen e Duguit são adversários do direito subjetivo, dizendo que, na verdade, não existe direito subjetivo, que só há um direito, que é o objetivo. E que a norma jurídica apenas produz ou disciplina os efeitos do direito objetivo. Então, na verdade, não haveria, para esses negativistas do direito subjetivo, um direito subjetivo distinto do direito objetivo, e sim projeções ou efeitos do direito objetivo - que seria único.
Voltemos, então, ao direito potestativo, cujo conceito já lhes transmiti, valendo-me da cultura e da erudição do professor Ovídio.
Vejamos, agora, rapidamente, as características do direito potestativo. Em primeiro lugar, como lhes disse, há um poder jurídico conferido por lei ao seu titular. Então, poder jurídico. Se não fosse assim não se chamaria direito potestativo - de poder.
A segunda característica é que esse poder se exerce através de uma manifestação unilateral de vontade. Quer dizer, não é uma manisfestação bilateral, como ocorre nos contratos. Ao contrário é uma manifestação unilateral de vontade, uma vontade emanada exclusivamente do titular do direito potestativo.
Em terceiro lugar, a característica é que esse direito potestativo é realizável de per si ou através de uma decisão judicial. O que quero dizer com isso? Que há direitos potestativos que o titular pode exercer independente de qualquer manifestação judicial. Exemplo: o direito de retrovender. O alienante aliena um imóvel seu, reservando-se o direito de recuperar o domínio se, após um certo tempo, restituir ao adquirente o preço pago. Decorrido esse prazo, o alienante, interessado em exercer o retrato, devolve ao adquirente o preço e recupera o domínio. Não há necessidade nenhuma, meus amigos, de qualquer interferência do judiciário para isso. Se o adquirente reconhece o direito potestativo e lhe devolve o domínio, não houve necessidade da interferência do poder judiciário. Então, esse direito potestativo foi exercido de per si, diretamente pelo titular.
Mas há direitos potestativos que, apesar desse poder, o judiciário tem que ser acionado. E o exemplo seria o do marido que não pode simplesmente dizer à mulher: ponha-se na rua, porque, como você já foi deflorada, o nosso casamento está desfeito. Ele não pode fazer isso. Ele terá de forçosamente propor a ação competente de anulação do casamento e é a sentença judicial que irá, então, implementar esse direito potestativo, que não se exercerá jamais de per si, pelo titular, que seria o marido.
Outra característica é o estado de sujeição da contraparte. Eu até digo aqui na apostila que talvez essa seja a maior de todas as características, a que distingue o direito potestativo de todas as demais classes de direito, esse estado sujeição. O direito potestativo pode ser exercido com ou sem a concordância da contraparte. Ao propor a ação o titular não quer a condenacão do réu a dar, prestar ou não fazer, e sim uma modificação na esfera jurídica da contraparte.
A quinta característica do direito potestativo seria a influência na situação jurídica preexistente. Entendam bem isso: no direito potestativo existe sempre uma situação, uma relação jurídica preexistente. E o direito potestativo vai influir nela, como eu lhes disse, ou criando um direito novo, ou modificando ou extinguindo. Então, haverá sempre uma influência numa situação jurídica preexistente.
E a última característica é que o direito potestativo produz, ou a criação de um direito, portanto, um efeito constitutivo, ou um efeito modificativo, ou um efeito extintivo. Então, nos temos direitos potestativos constitutivos, que são aqueles que constituem um direito novo. Eu citei, por exemplo, o direito do oblato de aceitar a proposta de contratar. O direito de passagem forçada, ou seja, o titular do prédio encravado, tem o direito potestativo de exigir do vizinho que lhe dê passagem. Então, isso é um direito potestativo constitutivo. O direito de escolha na obrigação alternativa, garantido ao devedor, pelo art. 884, do Código Civil de 1916.
Temos direitos potestativos modificativos, que são aqueles que produzem uma modificação numa relação jurídica preexistente. Por exemplo, o direito de remover a servidão, que está no art. 703, do CC/16; o direito de constituir o devedor em mora; o direito potestativo, muito característico, que tem o segurado de modificar o beneficiário do seguro. Vejam que com isso ele modificou a esfera jurídica tanto do antigo beneficiário, quanto do novo. Ele modificou a relação jurídica que é o contrato de seguro, indicando - e isso é um direito potestativo dele - um novo beneficiário.
E, finalmente, temos os direitos potestativos extintivos, que extinguem uma relação jurídica. Por exemplo, a revogação do mandato pelo mandante. A renúncia ao mandato pelo mandatário. A resilição unilateral do contrato de locação pelo locador. A anulação do casamento pelo marido. São todos direitos potestativos extintivos.
Nesta apostila, eu não vou ler isso aqui, porque não tem nenhuma necessidade, mas eu a título de curiosidade tive o cuidado de relacionar os artigos do Códido Civil/16, que estabelecem direitos potestativos. Desde o primeiro, o art. 70, fui por aí, pelo direito de família, pelo direito das coisas, pelo direito das obrigações. Estão aí os artigos no Código Civil, que retratam direitos potestativos.
E também, como o assunto me seduz e eu não consigo resistir a ele, também a título de curiosidade, em relacionei direitos potestativos que estão lá na Lei do Inquilinato: art. 6º, que é a denúncia da locação pelo locatário; o art. 8º, o art. 27, art. 46, art. 51, art. 78; tem vários artigos da Lei do Inquilinato que encerram direitos potestativos.
Agora, quero lhes dizer, meus amigos, que há direitos potestativos na Constituição, no Código Civil, no Código de Processo Civil, no Código Tributário, em suma, e, principalmente, quero chamar a atenção de vocês para o seguinte: embora seja uma matéria estudada no direito civil, justiça se faça: o direito potestativo foi melhor estudado pelos processualistas - Chiovenda, Calamandrei - todos estudaram o direito potestativo à luz do direito processual. Então, é impressionante observar isso como os processualistas perceberam, com maior sensibilidade que os civilistas, a importância do direito potestativo. Toda a construção doutrinária moderna do direito potestativo se deve aos processualistas, principalmente, Chiovenda. Qual é a importância prática dessa distinção? Por que nós devemos saber distinguir nitidamente um direito potestativo de um direito subjetivo? Porque, meus amigos, este é o critério científico hoje usado para distinguir um prazo de prescrição de um prazo de decadência. É a lição de outro processualista, que é Agnello Amorim. Quer dizer, então, que vocês reparem que a maneira científica de fazer a sempre difícil distinção entre prescrição e decadência está por aí. Ou seja, a prescrição atua no terreno dos direitos subjetivos. Aquele advogado que tem direito subjetivo aos seus honorários e que permanece inerte por cinco anos, sem defender o seu direito, sem propor a ação para compelir o cliente a lhe pagar, esse advogado tem a sua pretensão ao crédito fulminada pela prescrição. O direito subjetivo do advogado aos honorários permanece vivo, ele terá sempre direito aos honorários. Tanto que se o cliente, anos depois, num ataque de consciência, num prurido ético, resolver pagar, nada impede que o advogado receba os honorários, porque o advogado não perdeu o direito subjetivo. O que a prescrição fulminou é exatamente a coercibilidade do direito subjetivo. Eu não lhes disse que uma das características do direito subjetivo é a coercibilidade? A prescrição atua aí, meus amigos, na coercibilidade do direito subjetivo. Ou seja, o credor não tem mais os meios conducentes a compelir o devedor a lhe pagar. Agora, se o devedor, voluntariamente, resolver pagar pode fazê-lo e o pagamento não será jamais considerado indevido. Então, a prescrição atua nos direitos subjetivos, fulminando a pretensão à coercibilidade.
Já a decadência atua no território dos direitos potestativos para cujo exercício a lei estabelece um prazo. A lei é o contrato. Porque, meus amigos, há direitos potestativos que o seu titular poderá exercer quando quiser: o condômino pode extinguir o condomínio tradicional a hora que quiser, oitenta anos depois da sua constituição. Agora, o locador, terminado o prazo do contrato, poderá exercer esse direito potestativo de denunciá-lo quando quiser: dez anos depois de terminado o prazo, cinco, vinte, vinte e cinco. Mas há direitos potestativos para os quais a lei - ou o contrato - estabelece um prazo para o seu exercício: o marido só dispõe de dez dias, após o início da coabitação, para propor a ação de anulação do casamento. O adquirente só dispõe de quinze dias, após tradição da coisa, para redibir o contrato em razão de vício oculto. O vendedor só dispõe de até três anos para exercer o direito potestativo de retrovender. Em suma, vocês estão vendo, então, que há certos direitos potestativos para cujo exercício o titular tem um prazo. E aí o que acontece? Se o titular não exercer esse direito, o que ocorrerá? A decadência, não a prescrição. E aí o que o titular vai perder? A pretensão? Jamais. Aí ele perde o direito potestativo. Quer dizer, a decadência fulmina o direito potestativo. Não é a ação para exercê-lo: é o própiro direito que morre, graças aos efeitos deletérios da decadência. Enquanto que a prescrição simplesmente inibe o credor de exigir a prestação, mas mantém, hibernando, o direito potestativo. Então, vejam a importância prática dessa distinção. O Agnello Amorim mostra isso, meus amigos. Se você quiser saber, naquele misterioso art. 178, do CC/16, uma das maiores armadilhas do legislador preparou para os leitores, para os advogados, é uma maldade o art. 178, eu costumo sempre dizer. Eu acho que o legislador acordou, no dia que redigiu aquele artigo, de muito mal com a vida, porque eu acho que ele quis criar para as gerações futuras...

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Deixem-me explicar melhor, à luz do NCC. Isso que o Capanema está explicando, a brincadeira que ele fez sobre o mau humor do legislador, primeiro tem uma razão para isso. Clóvis Beviláqua, quando escreveu o Código Civil de 1916 (e isso o Capanema não explica nessa palestra) ele não cometeu nenhum erro: na parte geral do Código, ele elencou só os prazos prescricionais, e deixou para a parte especial alguns os outros prazos - que eram prazos decadenciais. Ocorre que o nosso legislativo não conhece o direito. E aí, o que fez o nosso legislativo? Achando que tinha algum equívoco, que tinha um monte de prazos espalhados, quando ........, pegou os prazos espalhados na parte especial e levou para parte geral. No que fez isso fez a tal salada de prazos do art. 179, do Código revogado. Esse erro passou despercebido pela Comissão Revisora, o Projeto foi aprovado, virou lei e nós ficamos com aquela loucura do art. 179, que misturava direitos potestativos com direitos subjetivos.
Deixem-me, também, explicar o critério científico criado por Agnello Amorim Filho, na década de 60. Até, então, a doutrina sempre fez muita confusão para distinguir prescrição da decadência. Assim, havia vários critérios: um deles, foi esse que o Capanema falou, nós aprendemos isso na Faculdade: a prescrição atinge a ação, a decadência atinge o direito. Lembram-se disso? Porém, isso não é um critério científico. é preciso criar um critério que não falhe nunca. O Agnello Amorim fez a grande descoberta: ele percebeu que o prazo se liga à natureza do direito, que por sua vez se liga à natureza da ação. Olhem que coisa interessante: ele descobriu que todos os direitos subjetivos são protegidos por ações condenatórias. E todos os direitos subjetivos têm prazos de exercício fixados em lei - não falta nenhum prazo. E por que não falta nenhum? Porque aqui, na relação dos direitos subjetivos, o legislador trouxe, no Código revogado, no art. 178, como prazo geral, e trouxe, no art. 179, vários prazos especiais para o exercício de direitos subjetivos. Então, quando abríamos o Código, se não encontrássemos nenhum prazo especial, era aplicado o prazo geral.
A mesma coisa acontece no Código de 2002: todos os direitos subjetivos têm prazos de exercício fixados em lei. Alguns são prazos especiais. E se não houver prazo especial previsto? Eu aplico o prazo geral. Então não há a possibilidade de termos um direito subjetivo sem prazo de exercício fixado em lei. Se eu quiser exercer o meu direito subjetivo, por exemplo, o direito de crédito, diante do inadimplemento do meu devedor, eu vou a juízo em que ação? Isso quer dizer que se eu não souber a natureza do direito, eu pergunto qual a ação que eu vou fazer? Para o juiz condenar Fulano? Então, se a ação é condenatória, o direito é subjetivo, o prazo para fazer uso da ação é prescricional. Só há prescrição de direito subjetivo. Que direitos são esses? Os protegidos por ações condenatórias.
Já é diferente com relação ao direito potestativo, porque o legislador não trouxe todos os prazos de exercício em lei. Trouxe alguns prazos - e é isso que o Capanema está falando. Há direitos potestativos cujo prazo de exercício está fixado em lei. Esses que têm prazos fixados em lei, este prazo é decadencial, porque a decadência é o instituto que se liga ao direito potestativo. O Agnello Amorim não só descobriu isso, como descobriu tam,bém que todos os direitos potestativos são protegidos por ações constitutivas. E o que fazer com aqueles direitos potestativos cujo prazo de exercício não foi fixado em lei - nem na lei velha, e muitos também não estão na lei nova? Esses são direitos que nós, equivocadamente, chamamos de imprescritíveis. Olhem o direito de investigar a paternidade. Mas eu não posso dizer que o direito é imprescritível se eu já sei que eu estou diante de um direito potestativo que não se liga à prescrição. O que se liga à prescrição é direito subjetivo, é direito pessoal, é direito de crédito. Se eu estou diante de um direito potestativo sem prazo de exercício fixado em lei, ... é dizer que estou diante de um direito perpétuo, assim como são perpétuas todas as ações de estado. Bom, mas nós estamos falando de direito potestativos que quando têm prazo de exercício fixados em lei o prazo é de natureza decadencial. Todos esses direitos são protegidos por ações constitutivas. Essa grande descoberta nós devemos ao processualista Agnelo Amorim, e está publicado esse critério científico nas boas revistas de Direito. Aqui no Tribunal de Justiça, tem...., Revista dos Tribunais. É só digitar o nome do Agnelo no computador que vai aparecer essa publicação em várias revistas.
.....É uma oportunidade que vocês têm, porque vocês ainda vão estudar a Parte Geral do Código com outro professor e, provavelmente, este, quando chegar no estudo de prescrição e decadência vai fazer referência ao texto do Agnelo Amorim. Mas como nós estudamos estudando relações jurídicas e dela emergem direitos subjetivos e potestativos é uma rara oportunidade de estar apresentando o texto a vocês.
Agora, vamos ao final da palestra do Sylvio Capanema.

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....acionam uma porção de prazos, dos quais uns são de prescrição e outros de decadência. E cada um que trate de identificar qual é o de prescrição e qual é o de decadência. Porque quando ele diz prescreve em, ele está se referindo não à prescrição stricto sensu, mas ao fenômemo extintivo. E ele achou que caberia à doutrina ir identificando se aquele prazo é de decadência ou de prescrição. Por exemplo: prescreve em 10 dias a ação do marido para anular o casamento. Este é logo o primeiro, mas este já não é de prescrição, é de decadência. Então, agnelo Amorim explica o seguinte: como é que vamos saber, no art. 178 (do CC/16) quais são os prazos de prescrição e quais são os de decadência? Então, Agnelo Amorim responde: se a ação é condenatória - e o que é uma ação condenatória? Aquela em que o autor quer uma sentença que condene o réu a lhe oferecer uma prestação, e você só pode propor ação condenatória se tem um direito subjetivo. Se você está exigindo uma prestação do réu é porque você tem um direito subjetivo. É aquela questão do dever jurídico do outro lado. Então se a ação é condenatória o prazo é de prescrição, e por que? Porque o autor está manejando, invocando direito subjetivo. Se a ação é constitutiva, positiva ou negativa, o prazo é de decadência - quando existir prazo, evidentemente, para a propositura da ação. E por que, meu amigos? Porque na ação constitutiva a sentença que o autor persegue não é para condenar o réu a uma prestação, e sim para modificar a relação jurídica que prende o autor ao réu. Daí ter lhes dito: quando o marido propõe uma ação de anulação de casamento não quer a condenacão da mulher, e sim a modificação da relação jurídica. Então, está aí a importância prática da distinção entre o direito subjetivo e o potestativo. Quer dizer, os processualistas aproveitaram isso para criar um critério científico para distinguir o prazo de prescrição do de decadência. Porque até então os critérios eram empíricos. O Câmara Leal dizia o seguinte: se a ação nasceu depois do direito, é prescrição; se a ação nasceu junto com o direito é decadência. Mas esse é um critério que não é científico, e até difícil, na prática, de distinguir. San Thiago Dantas foi o que mais aproximou-se dos processualistas. Ele dizia só isso: a prescrição atinge os direitos subjetivos, e a decadência os direitos potestativos. Mas o Agnelo Amorim foi mais feliz porque fez a distinção em razão da carga predominante da sentença. Ou seja, se a carga predominante da sentença é condenatória, o prazo é de prescrição. Se a carga predominante da sentença é constitutiva, o prazo é de decadência.
Diferenças entre direito subjetivo e direito potestativo. Praticamente, pelos conceitos que já emitimos vocês deduzem. No direito subjetivo há um dever jurídico pre-existente, o que não ocorre no direito potestativo. O direito subjetivo pode ser violado, e o direito potestativo não, porque há um estado de sujeição. Agora, a coercibilidade é igual. Tanto no direito subjetivo, quanto no direito potestativo o titular tem um poder de coerção sobre a contraparte nos dois. A diferença está no dever jurídico que existe no subjetivo e não existe no potestativo, e a possibilidade de violação.
Há uns outros conceitos, meus amigos, que os advogados confundem muito. Por exemplo: faculdade jurídica. Eu transcrevi aqui uma lição de Pontes de Miranda e de Mota Pinto mostrando a diferença da faculdade jurídica. É muito comum essa confusão porque realmente são institutos bastante afins, mas o que se diz é que na verdade a faculdade consiste no poder de agir. Então, por exemplo, eu tenho a faculdade de contratar, então a faculdade estaria dentro do direito subjetivo. Seria o efeito do direito subjetivo,é a faculdade que permite ao homem, então, exercer o direito subjetivo. Daí dizermos que a faculdade é poder de agir. Daí os romanos falarem facultas agendi - faculdade de agir.
Na apostila, transcrevendo a lição de Pontes de Miranda eu acho que será suficiente para que vocês consolidem essa distinção entre o direito subjetivo, o direito potestativo e a faculdade jurídica.
Outra questão que muita gente confunde é a chamada potestade - também chamada poder-dever, também chamado poder funcional. Muita gente pensa que é sinônimo de direito potestativo. Poderes funcionais, também chamados poderes jurídicos, ou poder-dever ou potestades - tudo são palavras que são análogas, usadas por vários autores são por exemplo, os poderes do curador, do tutor, do pai, quando exerce o pátrio poder. Ora, a primeira vista parece direito potestativo: o pai emite uma vontade unilateral e modifica a esfera jurídica do filho. O tutor emite uma vontade unilateral me modifica a esfera jurídica do pupilo. Mas há uma diferença entre o direito potestativo e o poder funcional. É que estes direitos que o pai exerce, o tutor, essa vontade que ele emite, ao conytra’rio do ocorre no direito potestativo, ela é emitida para reverter em benefício de outrem que é o filho, o pupilo e assim por diante. Então, essa é a diferença. E há uma outra importante diferença: se o titular do direito potestativo não exerce esse direito, evidentemente que ninguém tem nada com isso; ocorre a decadência, ele perde o direito, é um problema dele, pois ele não quis exercê-lo, não demonstrou interesse em exercê-lo. Já na potestade, não. Se o titular do poder não o exerce, e com isso prejudica o terceiro em cujo benefício ess poder reverte, ele poderá até responder por isso. Todos nós sabemos que hoje os incapazes tem ação de responsabilidade civil contra seus representantes legais que, por culpa, lhe tenha causado prejuízo. Por outro lado, há uma outra diferença fundamental: como eu acabei de lhes dizer, o direito potestativo seu titular o exerce ou não. Já no poder funcional, se o titular, o tutor ou o pai, não o exercem em prejuízo do filho ou do tutelado, ele pode sofrer uma sanção, inclusive a destituição desse poder. Quer dizer o pai pode ser destituído do pátrio poder, o tutor destituído da tutela e assim por diante.
O ônus jurídico é outro conceito muito confundido. O ônus jurídico é um comando da lei dirigido a uma determinada pessoa para que ela adote um certo comportamento caso lhe convenha proteger um interesse jurídico, um direito. Por exemplo: costuma-se dizer, erradamente, que o adquirente de um imóvel tem a obrigação de registrar seu título aquisitivo no Registro de Imóveis. Costuma-se dizer, erradamente, que o réu tem a obrigação ou o dever de contestar. Costuma-se dizer, erradamente, que o donatário tem o dever de cumprir o encargo numa doação modal. Tudo isso está errado: em nenhuma dessas acepções há um dever jurídico, uma obrigação, o que existe aí é um ônus jurídico. E por que é um ônus e não um dever? Porque o adquirente de um imóvel tem o ônus de registrar seu título aquisitivo? Ele está obrigado a registrar o título? Haverá multa se não registrar? Irá preso se não registrar?A autoridade vai bater à sua porta para conduzí-lo pelo braço até o registro de imóveis para ele registrar o título? Claro que não. Há pessoas que adquirem imóveis e levam anos sem registrar o título. Agora, o que a lei lhes diz é o seguinte: se lhes convier preservar a propriedade que estão adquirindo, registre o título, porque é assim que a propriedade sem transferirá a você. Assim, se interessar ao comprador adquirir o domínio e não correr o risco do alienante vender o mesmo imóvel a terceiro que registre antes o seu título, então ele registre.
Por que o réu tem o ônus de contestar? Não o dever de contestar - porque é um direito do réu não contestar. Por que ele tem o ônus, por que contestar é um ônus - não é um dever uma obrigação? Porque se ele não contestar ele sabe que os fatos deduzidos pelo autor na inicial serão tidos como verdadeiros. Se isso não interessar a ele, ou seja, se convier ao réu garantir o contraditório, o que ele faz? Contesta. Então, contestar é um ônus, ou seja, uma conduta, determinada pela lei, para que alguém preserve um interesse ou um direito. Então, o réu decidirá: se convier ao réu garantir o princípio do contraditório, se não convier ao réu que os fatos deduzidos pelo autor sejam tidos como verdadeiros, ele contesta. Se, ao contrário, o réu estiver se lixando para isso, se para o réu for indiferente que os fatos deduzidos pelo autor sejam tidos como verdadeiros ou não, ele não contesta.
E o donatário? Eu doei uma casa a um amigo com o encargo dele ali manter uma creche para crianças abandonadas. Uma doação modal, portanto, uma doação com encargo. O leigo diz que esse donatário está obrigado a cumprir o encargo, pois se está lá que ele recebeu em doação, mas com o encargo de abrir uma creche, é claro que ele tem de abrir, isso é uma obrigação do donatário. Não é: é ônus, por que? Porque o donatário sabe que se lhe convier manter a propriedade ele cumpre o encargo. Se ele não cumprir o encargo, o que pode fazer o doador? Revogar a doação. Então, cumprir o encargo é um ônus para o donatário, e não uma obrigação. A maior prova disso é que o doador não pode compelir o donatário a cumprir o encargo, vocês sabem disso. Não há ação para compelir o donatário a cumprir o encargo. Se fosse um direito subjetivo haveria ação para compelir: abra a creche, mantenha a creche aberta. O donatário vai dizer: não abro a creche, não quero abrir a creche. Agora, isso vai lhe trazer uma conseqüência, qual é? Perda da propriedade, revogação da doação pelo doador. Assim, cumprir o encargo é um ônus. Então essa é a diferença entre o direito subjetivo e o ônus jurídico. No ônus jurídico você cumpre uma conduta imposta por lei, mas no seu interesse. Enquanto que no dever jurídico há um comando imposto por lei no interesse do grupo social, do equilíbrio do grupo. No ônus jurídico o comando é dirigido ao interesse individual, caso interesse àquela pessoa preservar um direito ou um interesse seu.
Essas eram, então, as noções que eu relacionei para distinguir esses conceitos, infelizmente tão confundidos por vários advogados. Então vimos o que é direito subjetivo, direito objetivo, direito potestativo, faculdade jurídica, ônus jurídico, poder funcional.
Ainda relacionamos, a pedido dos alunos, temas que ficam às vezes esmaecidos na memória do advogado. Falou-se sobre a lei, conceito de lei, a classificação e, o que é mais importante - a eficácia da lei.
Quanto ao conceito de lei eu transcrevi dois conceitos: um genérico e um stricto. O sentido genérico de lei está aqui: lei é a que provindo de um poder de qualquer modo organizado, mas sempre supremo, regula, segundo os princípios da justiça e da utilidade social e por meio de uma sanção coativa as relações indispensáveis à vida social. É o conceito de Michely Reparem que fala-se aí, genericamente, inclusive associando-se a idéia da lei (por isso que é no sentido genérico) a idéia de justiça e de utilidade social. E também associando a idéia da lei a um poder supremo organizado, de onde ela emana.
Mas no sentido stricto, técnico nós diríamos que lei é uma disposição, de ordem geral, permanente, emanada do poder legislativo e sancionada e promulgada pelo presidente da república, visando a um indefinido número de pessoas e de atos ou fatos aos mesmos aplicados ipso iure. Quer dizer, aí já se faz uma referência técnica inclusive ao processo de elaboração legislativa. Quer dizer, o poder legislativo, na sua função clássica de elaborar as leis, a sanção e a promulgação do poder executivo e, o que é mais importante esse caráter genérico, geral da lei visando a um número indefinido de pessoas. Por isso, meus amigos, nós temos leis materiais e leis formais.
O que seria uma lei material? A lei material seria exatamente aquela que tem a substância da lei. Ou seja, essa coercibilidade, essa destinação a um número indenifido de pessoas, mas que não obedeceram àqueles requisitos extrínsecos, formais da lei. Por exemplo, não emanaram do legislativo, não tiveram toda essa formação legislativa. São exemplos o decreto executivo, os regulamentos: eles têm conteúdo de lei, mas não têm a forma de lei. É o caso dos decretos-leis, das medidas provisórias; quer dizer, elas não seguem aquela formação clássica da lei, mas têm conteúdo, como a medida provisória. Elas têm a substância da lei, mas não têm a forma da lei, por isso se chamam medidas provisórias, decretos-leis (antigamente), regulamentos, decretos-executivos. Um decreto de expulsão de um estrangeiro é uma lei material, jamais formal.
Já as leis formais são exatamente o inverso: elas têm a forma da lei, mas não têm o conteúdo da lei porque não se dirigem a um número indefinido de pessoas: ao contrário, podem se dirigir a uma situação específica, ou a um grupo específico. Por exemplo: são os atos administrativos, reguladores da atividade do Estado; uma lei que reconhece personalidade jurídica a uma sociedade, dirigida só àquela sociedade. Então, têm forma de lei, mas não têm a substância da lei.
Na classificação das normas jurídicas, nós podemos classificar as leis segundo o seu conteúdo. Aí nós temos leis preceptivas. Leis preceptivas são as leis que ordenam, são aquelas que comandam, aquelas que nos impõem um determinado comportamento. E aí nós temos leis preceptivas de caráter absoluto - são aquelas que nos impõem um comportamento sob pena de sanção; temos as leis que estabelecem apenas regras imperativas, mas que não estabelecem sanção; e temos, finalmente, as leis que prescrevem regras observadas por quem pretenda fazer tal ou qual coisa.
Temos leis proibitivas, que são leis que impedem, vedam um comportamento.
E, finalmente, temos normas permissivas: são aquelas que permitem a realização de um ato ou de um fato, mas dando às pessoas um certo arbítrio, para que modifiquem, inclusive, o comando da lei. Aliás, meus amigos, toda vez que vocês encontrarem uma lei, num de seus artigos, a expressão “salvo se...”, “salvo se o contrário constar do título... ” , isso é uma lei permissiva. Ex.: art. 950, do CC/16: “Efetuar-se o pagamento no domicílio do devedor, salvo se as partes convencionarem diversamente”. Essa é uma típica lei permissiva. Ou seja, a regra geral é que as obrigações sejam o quê? Querables. Obrigações querables são aquelas em que o pagamento é no domícilio do devedor. Agora, nada impede que se ajuste que o pagamento seja no domicílio do credor e, portanto, seja portable.
Art. 952. “Salvo disposição especial desse Código (CC/16), e não tendo sido ajustado época para o pagamento, o credor por exigi-lo imediatamente”
Os arts. 884 e 857, sabem sobre o que versam? É sobre as obrigações de dar coisa incerta, ou das obrigações alternativas. Diz assim:
“nas obrigações de dar coisa incerta, a escolha pertence ao devedor, salvo se o contrário dispuser o título.
Na obrigação alternativa, a concentração do débito cabe ao devedor, salvo se o contrário dispuser o título”.
Na Lei do Inquilinato: “Salvo disposição expressa no contrato, as benfeitorias necessárias e úteis autorizadas são indenizáveis; salvo disposição expressa em contrário.
Então, toda vez que a lei der às pessoas esse arbítrio de lhes permitir cumprir ou não, ou modificar o comando da lei, isso é uma norma permissiva. Aliás, essas normas permissivas são típicas do direito civil, do direito privado em geral. Enquanto que as normas imperativas e preceptivas são típicas do direito público. O que não quer dizer que não tenhamos normas imperativas no direito privado. O Código Civil/16 está cheio delas, principalmente, na parte do direito de família. Por isso é que se diz que o direito de família é o mais público dos direitos privados, porque é o ramo do direito civil que apresenta o maior número de regras cogentes, que são tipicamente do direito público, exatamente em homenagem ao caráter social de que se reveste a família.
Mas também podemos classificar as leis segundo a sua força obrigatória. Aí temos as leis cogentes - as que se impõem por si mesmas, excluindo qualquer arbítrio individual (o art. 693, do CC/16; a imutabilidade do regime de bens entre os cônjuges (isso mudou no NCC)); e temos as leis relativas que são exatamente as que não se impõemao respeito dos indivíduos, senão supletivamente, admitindo, portanto, modificação do comando.
Segundo o campo de aplicação, temos leis normais, que são as comuns, que são as gerais, como por exemplo, todas as regras inerentes aos contratos. Então, todos aqueles dispositivos que estão lá, sob o título “disposições gerais sobre os contratos” seriam leis normais, comuns.
Já a lei referente à compra e venda já seria uma lei singular. A lei da alienação fiduciária, Decreto n. 911, é uma lei singular, porque não se aplica genericamente ao direito das obrigações, mas, ao contrário, cinge-se à alienação fiduciária.
E temos também as famosas leis de ordem pública. E isso é muito importante frisar, porque, erradamente, se diz aqui entre nós que as leis de ordem pública poderiam retroagir. Isso é um equívoco lamentável que nós aqui no Brasil cometemos. Porque na França se diz isso: que as leis de ordem pública podem retroagir. E na França se diz isso e, corretamente, por que? Porque na França o comando da irretroatividade da lei está inserido apenas na legislação ordinária, portanto, ele só se dirige ao juiz, mas não ao legislador. Então o legislador francês está livre para legislar retroativamente, desde que ele, na lei nova, diga, expressamente, que ela produzirá efeitos sobre o passado. Porque, repito, no Código Civil francês, se diz que a lei não retroage, mas só se diz isso no Código Civil, não se diz na Constituição. Portanto, o legislador poderá expressamente atribuir a uma lei nova efeitos retroativos. E principalmente acontece isso na França nas leis de ordem pública. Quer dizer, quando na França se legisla no interesse coletivo é muito freqüente que se diga que elas retroagirão. Só que no Brasil, como nós sabemos, o comando da irretroatividade não se limita à legislação ordinária, que também é um cânone constitucional. Conseqüentemente, o comando da irretroatividade da lei no Brasil se dirige também ao legislador, e não apenas ao juiz. Então, o legislador no Brasil não pode legislar retroatividade, porque a lei que ele fizer retroativamente já nascerá morta, viciada pela maior de todas as moléstias da lei - que é a inconstitucionalidade.
Então, é importante também falar sobre as leis de ordem pública, mas que não são tão fortes assim a ponto de vencer o comando constitucional e lançar as suas sombras sobre o passado.
Mas o que eu quero falar para encerrar esse nosso encontro é exatamente sobre a eficácia da lei. Quer dizer, a norma jurídica, meus amigos, tem de ser dotada de uma eficácia, que lhe permita qualificar os fatos jurídicos, atribuir-lhes efeitos, disciplinar as relações sociais que se transformam em relações jurídicas. Quer dizer, se ela não conseguir fazer isso, evidente, que ela não é eficaz. E essa eficácia da norma jurídica está ligada à sua vigência. Quando a norma jurídica começa, então, a vigorar? Quando é que ela se torna cogente? Quando é que ela se impõe à sociedade? Com a sua publicação, em primeiro lugar. Mas não basta só publicar a lei, porque ela só vai ser eficaz quando se inicia a sua vigência. E o sistema geral adotado no Brasil é que haja um período entre a publicação e o início da vigência da lei, período esse que se chama - vacatio legis. Expressão, aliás, que deu origem a uma das anedotas mais engraçadas da vida acadêmica. Perguntou o professor à turma o que seria vacatio legis, e como estávamos na época da novela “O rei do gado”, o aluno disse logo que era a legislação referente à pecuária. Seria a vacatio legis.
Mas a vacatio legis é exatamente esse intervalo entre a publicação e o início da vigência da lei. Que o Código Civil brasileiro (o de 1916), na Lei de Introdução, aliás, estabeleceu em 45 dias, em média, para o início da vigência da lei no Brasil, e 90 dias para o início da vigência da lei no exterior. Então, 45 dias é o prazo médio. Por que se criou a vacatio legis? Porque é preciso que a sociedade tenha um tempo para conhecer a lei, desvendar os seus mistérios, entendê-la e aplicá-la convenientemente. Por isso, meus amigos, é que esse prazo de 45 dias não é obrigatório, ele pode ser reduzido, pode ser dilatado. O Código Civil teve uma vacatio legis de um ano: foi publicado em 01/01/1916 e entrou em vigou em 01/01/1917. Porque como um Código Civil, o legislador entendeu que era preciso um ano para a sociedade brasileira entendê-lo, desvendá-lo, compreendê-lo.
Há outras leis que têm vacatio de trinta dias, e há leis que não têm vacatio alguma, ou seja, entra em vigor imediatamente no momento da sua publicação. Isso é uma questão de conveniência social e política. O legislador é que na sua sensibilidade social decidirá se aquela lei deve entrar em vigor imediatamente, sem vacatio, ou se ao contrário, deve ter um período de adaptação ou de conhecimento pela sociedade. Eu vou dar um exemplo: quando surgiu a Lei do Inquilinato de 1979, a Lei 6649, ela aboliu a denúncia vazia para as locações residenciais. Aboliu. Porque antes dela admitia-se a denúncia vazia. Esta Lei do Inquinilato dizia - ela entra em vigor imediatamente. Sabem por que? Porque se desse 60 dias, ou 45 dias de vacatio legis ia ser uma tragédia social, porque todos os locadores - todos - que já tivessem o seu contrato expirado, sabendo que a denúncia vazia acabara, o que iriam fazer no período da vacatio? Denunciar os seus contratos, ia ser uma ecatombe social. Então o legislador não podia permitir isso. Então ele promulgou a lei dizendo - entra em vigor hoje, na mesma hora. Para não dar tempo dos locadores denunciarem as locações.
Já a atual lei do inquinilato, como readmitiu a denúncia vazia, fez 60 dias de vacatio legis. Porque se os locadores já estavam sem denúncia vazia desde 1979, esperassem mais dois meses, não iam morrer por causa disso. Então, esta teve necessidade de vacatio legis: teve sessenta dias para entrar em vigor. Já a anterior, que aboliu a denúncia vazia, não permitiu vacatio legis. Então isso vai depender do interesse social e político.
Mas a grande questão que eu quero conversar com vocês é a seguinte: vamos imaginar que diante da lei nova, que tratou de maneira diferente uma relação jurídica, duas pessoas se anteciparam e, no período da vacatio legis, celebram um contrato já sob o sistema da lei nova, contrário ao sistema da lei vigente. Entenderam a hipótese? A lei anterior revogada, mas que ainda está em vigor - porque, evidentemente, na vacatio legis a lei que está em vigor é a anterior; então, nesse período eles celebram um contrato que contraria a lei atual, mas que está rigorosamente subssumido ao sistema da lei nova, que entrará em vigor daí há dias. Esse ato será eficaz ou, ao contrário, deve ser fulminado? Ou pior ainda: vem a lei nova, que é prejudicial às partes, e elas então se antecipam, se apressam e praticam um ato que não praticariam senão daí há algum tempo, mas praticam logo para subssumi-lo ao regime da lei antiga que lhes era mais favorável * . Esses é que são os grandes desafios da vacatio legis. A jurisprudência e a doutrina, como sempre, divergem diante disso. Os mais strictos, os mais legalistas dirão: no primeiro caso, se o ato foi praticado contra a lei antiga, embora de acordo com a lei nova, ele é nulo, porque ele está violando a lei vigente. Alguns autores mais liberais dizem que não, que nós teríamos que ver se as chamadas disposições inocentes, quer dizer, se não há um prejuízo evidente às partes, deve-se admitir esse ato. Um exemplo: a Lei nova do Inquilinato permite a citação e os atos de comunicação processual por carta, por via postal. A Lei anterior não permitia. Como a nova Lei teve sessenta dias de vacatio legis, vamos imaginar que nesse período se tenha celebrado um contrato de locação estabelecendo que as comunicações processuais se farão por via postal. Ora, esse contrato está contrário à Lei, então, vigente, mas de acordo com a Lei nova. Mas aí se pergunta: isso não é uma disposição inocente, isso traz algum prejuízo às partes, traz algum prejuízo à sociedade? Obviamente que não. Então, uma grande parte da doutrina - o prof. Fucks, inclusive, defendeu essa tese num livro que publicou sobre a nova Lei do Inquilinato, entende que a idéia de se manter esse ato, ainda que contrário à Lei vigente à época da sua celebração, já que aquilo era uma disposição inocente.
O segundo caso é mais complicado, porque se o ato foi praticado sob o império da lei vigente e de acordo com ela, não haveria como anulá-lo, porque ele tem obedecer à lei vigente à época da sua celebração. Mas há uma corrente que acha que se este ato foi praticado naquele momento da vacatio legis, no exclusivo propósito de fraudar a lei futura ele deve ser anulado em homenagem ao princípio da vedação da fraude alheia. Então vocês vejam como a matéria é realmente desafiante.
Assim como é importante saber quando a lei entra em vigor, é preciso saber quando ela deixa de ter eficácia. A lei é em princípio criada para ter vida indeterminada. É muito raro que a lei se autolimite, é muito raro que a lei já estabeleça o momento da sua morte. O legislador, em geral, não tem essa preocupação, ele legisla para o futuro e de maneira indeterminada. A lei vigerá enquanto for útil, enquanto conseguir disciplinar o fato jurídico a que ela se propõe.
Mas, há situações em que a lei já nasce autodeterminada. A Lei n. 1300, de 28 de dezembro de 1950, dizia que ela só vigorá até 28 de dezembro de 1952. Esta Lei 1300 já nasceu com o dia da sua morte nela mesma fixada. Então, isso seria a revogação da lei por uma causa íncita a ela mesma. Ela já nasce se autolimitando temporalmente.
Também pode haver a revogação da lei por uma causa íncita a ela mesma quando ela se destina a regular uma situação temporária. Uma vez cumprido o seu objetivo, uma vez pacificado o mercado, uma vez extintas todas aquelas condições que determinaram o nascimento da lei, ela automaticamente se extingue porque não há mais razão de mantê-la viva já que o fato jurídico que ela disciplina, por sua vez, também já se extinguiu. Então, vocês vejam que a lei pode cessar a sua eficácia por causas a ela mesma íncitas. E pode também cessar pela revogação por lei posterior, que é a hipótese mais freqüente. Aliás os romanos faziam uma diferença que nós agora abolimos (eu acho que abolimos muito bem, são minúcias técnicas); os romanos faziam a distinção entre a ab-rogação da lei e a derrogação. São coisas diferentes: na ab-rogação haveria uma revogação total da lei anterior, quer dizer, quando a lei nova afasta inteiramente a lei anterior da memória social. E derrogação é quando a lei nova afasta apenas alguns dispositivos da lei anterior. Então seria uma revogação parcial. Para os romanos revogação seria um gênero que admitiria duas espécies: a ab-rogação, que seria a revogacão total e a derrogação que seria a revogação parcial. Felizmente, hoje, na Lei de Introdução ao Código Civil, nós abolimos essa distinção e hoje referimo-nos à revogação para as duas hipóteses. Preferimos hoje dizer revogação total ou revogação parcial. Mas se quiserem, não é errado, ao contrário, é prova até de erudição dizer derrogação, quando se trata de revogação parcial; e ab-rogação, quando se trata de revogação total. Essa revogação (de agora em diante vamos falar só revogação) pode ser, então, expressa como pode ser tácita. Ela será expressa quando a lei nova elencar aquelas leis anteriores ou dispositivos que estão sendo afastados de vigência. Mais uma vez, citando a Lei do Inquilinato, com a qual tenho maior intimidade profissional, a Lei do Inquilinato atual, no art. 90, elencou quais as leis anteriores do inquilinato que estavam afastadas de vigência. Todas elas foram, portanto, revogadas expressamente. Também se considera revogação expressa aquela referência genérica: “revogam-se as disposições em contrário”. Quer dizer, é muito comum que a lei nova diga assim: “revogam-se as disposições em contrário”. Então, todas as disposições em contrário estariam revogadas expressamente. Mas há autores que não entendem assim; há autores que acham que essa expressão genérica, quase que um jargão legislativo - “revogam-se as disposições em contrário” - isso seria uma revogação tácita, e não expressa. Mas isso é uma questão também de divergência doutrinária.
E temos a revogação tácita. A revogação tácita ocorre em duas hipóteses: quando a lei nova é incompatível com a anterior. Ora, se ela é incompatível não se pode imaginar que o legislador seja maluco de querer que o mesmo fato jurídico seja disciplinado...

#*#*#*#*#*#*#*#*#*#*#*#*#*#*#*#*#*#*#*#*#*#*#*#*#*#*#*#*#*#*#*#*#*#*#*#*#*#*#*#* (*) O NCC resolve esses desafios.